FREIRE, Rafael de Luna
https://orcid.org/0000-0002-4739-0603
Resumo: Este artigo analisa o Centro de
Cultura Cinematográfica (CCC) como
exemplo das relações entre o cineclubismo e a
preservação audiovisual no Brasil do pós-
Segunda Guerra Mundial. Nesse sentido,
defende que os cineclubes cariocas dos anos
1950 tem uma importância maior do que
apenas a de ter servido como espaço de
formação para os futuros diretores do Cinema
Novo. A incorporação do CCC ao Museu de
Arte Moderna do Rio de Janeiro, dando origem
à Cinemateca do MAM, é comparada com o
exemplo anterior da fusão do Clube de Cinema
de São Paulo à Filmoteca do Museu de Arte
Moderna de São Paulo, depois Cinemateca
Brasileira. Em meio a essas relações, o artigo
destaca como questão central para os
cineclubes da época a dificuldade de acesso a
cópias de filmes e a espaços de exibição.
Palavras-chave: cineclubes; cinematecas;
década de 1950; Rio de Janeiro.
Abstract: This article analyzes the
Centro de
Cultura Cinematográfica
(CCC) as an example
of the relationship between film clubs and film
preservation in post-World War II Brazil. Thus
I argue that the 1950s Rio de Janeiro film clubs
had a greater importance than just having
served as a formative place for the future
filmmakers of the
Cinema Novo
movement. The
incorporation of the CCC to the Museum of
Modern Art of Rio de Janeiro, giving rise to the
MAM Film Archive, is compared with the
previous example of the fusion of the São Paulo
Film Club with the Film Library of the Museum
of Modern Art of São Paulo, later Brazilian Film
Archive. Amid these relations, the article
highlights as a central issue for the film clubs
the difficulty of access to film prints and
screening rooms.
Keywords: film clubs; film archives; 1950s; Rio
de Janeiro.
Recebido em: 08/02/2022
Aprovado em: 23/04/2022
Doutor em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ. Professor Associado no
Departamento de Cinema e Vídeo e no Programa de Pós-Graduação em Cinema e Audiovisual da UFF. E-
mail: rafaellunafreire@id.uff.br
Este é um artigo de acesso livre distribuído sob licença dos termos da Creative Commons Attribution License.
Introdução
O movimento cineclubista carioca dos anos 1950 é frequentemente encarado por
somente um de seus atributos, o de embrião do Cinema Novo. Nesse sentido, o foco dos
historiadores é muitas vezes restrito, por exemplo, ao Centro de Estudos
Cinematográficos da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, criado em
fins de 1954, ou ao Grupo de Estudos Cinematográficos da União Metropolitana dos
Estudantes, fundado em 1957 (GATTI, 2000, p. 128-129). Esses cineclubes cariocas ligados
a universidades e diretórios estudantis costumam ser lembrados nos livros de história do
cinema brasileiro principalmente por terem sido ponto de convívio de cineastas
posteriormente reconhecidos como cinemanovistas, tais como Joaquim Pedro de Andrade,
Paulo César Saraceni, Leon Hirszman ou Carlos Diegues. Trata-se, em primeiro lugar, de
uma abordagem claramente teleológica, na qual a análise do fato histórico é compreendida
e justificada por um desdobramento futuro.
Esse enfoque simplista é plenamente identificado ainda com o olhar redutor da
“historiografia clássica do cinema brasileiro” (BERNARDET, 1995), pois o interesse do
historiador concentra-se quase que exclusivamente na produção de filmes, mesmo na
abordagem de um tema essencialmente ligado à exibição. Trata-se, acima de tudo, de uma
visão parcial e lacunar da história do cineclubismo brasileiro, geralmente empreendida
pelos próprios cineastas do Cinema Novo ou por historiadores em afinidade com eles, que
se baseiam, frequentemente, em relatos desses próprios realizadores.
Localizado entre os marcos de 1954 e 1957, o ano de 1956 é especialmente relevante.
O foco deste artigo é o Centro de Cultura Cinematográfica (CCC), criado no Rio de Janeiro
justamente nesse ano, mas hoje muito menos lembrado. O CCC foi um cineclube criado
por jovens homens brancos, cinéfilos e moradores de Copacabana, que não possuíam
relação alguma com grêmios ou movimentos estudantis e nem sequer com o ambiente
universitário. Alguns de seus integrantes seguiram carreiras relevantes no cinema
brasileiro, mas não necessariamente no campo da realização de filmes e definitivamente
não no Cinema Novo.
Dentre os criadores do CCC está Carlos do Amaral Fonseca (1930-2006), que se
profissionalizou posteriormente como crítico e produtor cinematográfico.
1
O presente
artigo faz uso de documentação integrante da coleção Carlos Fonseca, doada em 2016 para
a Universidade Federal Fluminense e abrigada na Cinemateca do Museu de Arte do Rio de
Janeiro (MAM-RJ).
2
Como metodologia de pesquisa, este artigo baseou-se na consulta à
1
Sobre a vida e carreira de Fonseca, ver Freire e Fróes (2020).
2
A partir da doação da coleção Carlos Fonseca foi formado um grupo de trabalho, coordenado pelo autor
deste artigo e integrado por alunos do curso de cinema e audiovisual da UFF, com o objetivo de organizar e
bibliografia sobre o tema, na análise minuciosa da coleção Carlos Fonseca, em especial o
conjunto completo de programas do CCC (COLEÇÃO, 1956-1957), e em entrevistas com
frequentadores do cineclube.
Justificamos a importância deste estudo sobre o CCC pelo fato de que sujeitar a
análise do movimento cineclubista carioca dos anos 1950 apenas pelo que ele representou
para a produção cinematográfica e apenas na sua vertente “culta”, para usar outro termo
de Jean-Claude Bernardet (1979) é perder o foco da sua relação vital com outras áreas
com as quais o cineclubismo dialogou profundamente, como a preservação audiovisual. E
como este estudo pretende demonstrar, o CCC foi uma iniciativa de grande relevância na
história das cinematecas no Brasil. Sua investigação contribui ainda para a compreensão
do desenvolvimento da cultura cinematográfica no país no pós-Segunda Guerra Mundial.
Para atender a esse objetivo, partindo do estudo de caso do CCC, este artigo irá se
concentrar em duas questões materiais, de ordem prática, que eram cruciais para os
cineclubes cariocas em meados do século XX e evidenciam a clara relação com as
cinematecas: as cópias dos filmes e os espaços de projeção.
O exemplo de São Paulo e a criação do CCC
Autores como Maria Rita Galvão (1976, p. 31-50) já destacaram como o pós-guerra
representou um período de acentuado desenvolvimento da cultura cinematográfica no
Brasil, com a inclusão do cinema no campo de interesse da elite intelectual. Trata-se de
um movimento que abrangeu o adensamento da crítica cinematográfica nos jornais
diários, o incremento na edição de livros e revistas de cinema mais intelectualizados, e a
criação de cineclubes e cursos de cinema ao redor do Brasil (FREIRE, 2011, p. 440-445).
Entretanto, é preciso nuançar as diferenças desses acontecimentos em diferentes regiões
do país.
Na São Paulo enriquecida do pós-guerra, ao institucionalizar-se enquanto forma de
arte respeitável, o cinema recebeu o “beneplácito da alta burguesia paulista” (GALVÃO,
1976, p. 48). Antes disso, ainda em 1940, o Clube de Cinema de São Paulo teve vida efêmera
em meio ao contexto repressivo do Estado Novo e sem ter alcançado melhores condições
de funcionamento: em grande parte, o clube realizou exibições domésticas em cópias
9,5mm, bitola de uso amador (CORREA JUNIOR, 2010, p. 89). durante os ares mais
democráticos do pós-guerra, o segundo Clube de Cinema de São Paulo oficialmente
criado em 1947 repercutiu além do previsto por seus integrantes, se desenvolvendo
catalogar essa documentação e disponibilizá-la ao público. Ao trabalho do grupo, com duração de um ano e
meio, seguiram-se dois projetos de iniciação científica, realizados entre 2018 e 2020. O trabalho foi suspenso
devido à pandemia do coronavírus.
rapidamente, mesmo ainda enfrentando dificuldades em relação, por exemplo, à
disponibilidade de espaços de projeção.
3
Então vivendo na Europa, Paulo Emílio Salles Gomes um dos criadores do
primeiro clube e que se engajou no segundo ao saber de sua criação incentivou que o
Clube de Cinema de São Paulo formasse um acervo para sustentar suas exibições. Desse
modo, estimulou a crião de uma Filmoteca, mesmo que inicialmente apenas “imaginária”,
para viabilizar o ingresso na Federação Internacional de Arquivos de Filmes (FIAF) e,
principalmente, para desfrutar do intercâmbio e circulação de cópias do acervo de seus
membros.
Embora ainda sem existência concreta, a “Filmoteca de São Paulo” ingressou na
FIAF em 1948, permitindo que Paulo Emílio adquirisse, para a instituição brasileira, dois
lotes de filmes silenciosos europeus, em 16mm, que chegaram a São Paulo no ano seguinte.
Enquanto isso, a criação do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP)
possibilitou a oportunidade da “Filmoteca de São Paulo” se transformar definitivamente
em realidade. O resultado foi a criação da Filmoteca do MAM-SP, que coexistiu
inicialmente com o Clube de Cinema, até finalmente absorvê-lo em 1949. Portanto, foi no
mesmo contexto da criação dos estúdios da Vera Cruz que o industrial Francisco
Matarazzo Sobrinho também ofereceu o suporte financeiro necessário para a
consolidação da ação de difusão do Clube, agora Filmoteca: equipamento de projeção (dois
novos projetores Simplex, 35mm), uma sala própria de exibição de 180 lugares e sua
incorporação a uma nova e sólida instituição (SOUZA, 2009, p. 57).
Afora fomentar a criação de cineclubes ao redor do país, a Filmoteca do MAM-SP
teve, a partir de então, grande desenvolvimento nas suas atividades de difusão na capital
paulistana, por exemplo, com a organização do I Festival Internacional do Cinema, em 1954.
A filmoteca comprou grande parte das cópias de clássicos estrangeiros que foram exibidos
no evento, ampliando seu acervo (ZANATTO, 2018, p. 196-197). Resultado semelhante em
relação ao acervo de películas brasileiras ocorreu com a organização da I e II
retrospectivas do cinema brasileiro, em 1952 e 1954, respectivamente.
Sem desfrutar do providencial mecenato cultural paulistano, muitas iniciativas
surgidas no Rio de Janeiro dedicadas à exibição e discussão coletiva de filmes para além
das possibilidades do circuito comercial tradicional tiveram vida curta e difícil no imediato
pós-guerra. Esse foi o caso, por exemplo, do Círculo de Estudos Cinematográficos, que
3
Depois de expulso da cabine do Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda por razões políticas, o
segundo Clube de Cinema de São Paulo perambulou durante meses, entre 1947 e 1948, por outros espaços
da cidade, como cabines de distribuidoras americanas e cinemas comerciais em horários matutinos (SOUZA,
2009, p. 55).
teve uma existência precária entre aproximadamente 1949 e 1951, dada a falta de estrutura
e apoio. Porém, em meados dos anos 1950, tendo o já consolidado exemplo paulista como
inspiração e suporte, floresceram novos cineclubes no Rio de Janeiro, fomentando um
espaço público alternativo para a visão de filmes antigos ou recentes , embora
enfrentando semelhantes desafios práticos para sobreviver. Não apenas cineclubes, eram
clubes de cinema. Ou centros de cultura.
4
Criado em 1956, o Centro de Cultura Cinematográfica (CCC) demonstrava, já em
seu nome, pretensões mais amplas do que ser uma entidade dedicada apenas à realização
de sessões de filmes. Essas ambições eram expressas no texto de apresentação do CCC,
de 28 de maio de 1956, convidando possíveis interessados a ingressar no quadro de sócios
do clube em “vias de inauguração”. Ainda que o objetivo principal fosse a projeção regular
de filmes consagrados pela crítica especializada mundial, o CCC expressava também
planos de realizar conferências, criar uma biblioteca e publicar um boletim regular. Isto é,
funcionar como uma agremiação social, reunindo indivíduos com interesses afins, cujas
atividades seriam sustentadas pelas mensalidades de seus membros, num compromisso
mais sólido do que o comparecimento a sessões eventuais.
5
Essa maior ambição era certamente inspirada pela atuação da Filmoteca do Museu
de Arte de São Paulo e também pela então recente criação do Departamento de Cinema
do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. As intenções do CCC espelhavam ainda o
desejo de encontro, reunião e convivência entre indivíduos semelhantes jovens homens
brancos de classe média que compartilhavam a paixão pela arte cinematográfica. A
noção de “clube” expressa o caráter elitista pela vontade de formação de um grupo
exclusivo, restrito àqueles que compartilhassem de uma cultura cinematográfica ou, pelo
menos, do interesse por cultivar uma. Como o já mencionado texto do programa inaugural
deixava bastante claro, o Centro de Cultura Cinematográfica se destinaria ao
desenvolvimento da cultura especializada nesse novo setor das artes, servindo ainda como
ponto de contato para um maior estreitamento das relações intelectuais e artísticas
entre
as elites do Rio
” (grifo nosso).
4
Ao comentar a criação do CCC, o crítico Décio Vieira Otoni se lembrou do falecido Círculo de Estudos
Cinematográficos”. O CEC teria feito o possível para sobreviver, “mas naquela época, mais de cinco anos,
as dificuldades eram enormes e, não obstante a existência de outras instituições em São Paulo, elas não
estavam suficientemente desenvolvidas, como hoje, ao ponto de prestar ao nosso improvisado Círculo a
assistência necessária” (OTONI, 1956).
5
Eram ambições comuns a diversas iniciativas cineclubistas da época, tal como o Centro de Estudos
Cinematográficos da Faculdade Nacional de Filosofia, que reuniu biblioteca especializada, editou boletins e
organizou cursos (ARAÚJO, 2013, p.28-30). Há de se destacar ainda que, juntamente com a Livraria Agir, o
CCC passou a representar e distribuir no Rio de Janeiro a sofisticada
Revista de Cinema
, editada em Belo
Horizonte a partir de 1954, pelo homônimo Centro de Estudos Cinematográficos criado na capital mineira,
em 1950. O próprio Carlos Fonseca, mineiro de Alfenas, chegou a colaborar com textos para a
Revista de
Cinema
.
Portanto, o CCC apresentava uma natureza diferente da intenção democratizante
e geralmente motivada por militância política que cineclubes ligados a sindicatos,
partidos políticos ou agremiações estudantis teriam principalmente a partir dos anos 1960.
Tendo sido um frequentador do CCC, o cineasta Walter Lima Júnior destacou como muitos
cineclubes eram reuniões de células do Partido Comunista Brasileiro, enquanto que o
Centro de Cultura Cinematográfica tinha um perfil diferente, distinguindo-se, inclusive,
por ser, em suas palavras, um “cineclube mais Zona Sul” (Walter Lima Júnior, entrevista,
11 ago. 2020).
Apesar das grandes ambições, ao ser criado, o CCC não tinha muito mais que uma
sede provisória: a sala 605, na rua México, 74. Por trás da iniciativa estava um grupo de
vizinhos de Copacabana na faixa dos vinte anos: além de Carlos Fonseca, os amigos
Arnaldo Arêas Coimbra, Flávio Manso Vieira, George Gurjan e Hugo Sérgio Koatz. Para
sobreviver e se destacar em meio a diversas outras iniciativas cineclubistas encabeçadas
por jovens como eles, o grupo buscou ligação com elementos da imprensa especializada.
No Rio de Janeiro, havia alguns anos, vinha se evidenciando uma espécie de racha
na crítica cinematográfica, dividida entre cronistas tamm ligados às distribuidoras de
filmes (onde eventualmente trabalhavam como publicistas) e jornalistas geralmente mais
jovens que pleiteavam rigor e independência para a atividade, intitulando-se “críticos não-
comerciais” (ADAMATTI, 2009, p. 305-306). O CCC buscou apoio e chancela desses
também chamados “críticos intelectualizados” com os quais se identificavam. Eles eram
capitaneados por Antonio Moniz Vianna, que iniciou sua atividade crítica a partir de 1946,
no jornal
Correio da Man
, promovendo um adensamento da crítica cinematográfica na
imprensa diária, com impacto nacional (CUNHA, 2000, p. 564-565, MENDONÇA, 2009;
FREIRE e FRÓES, 2020, p. 470-471). No lado oposto aos “críticos intelectualizados”, estava
o grupo representado por Joaquim Menezes, presidente da Associação Brasileira de
Cronistas Cinematográficos (ABCC).
6
A aliança do CCC com críticos de grandes jornais cariocas era fundamental ainda
para garantir visibilidade e divulgação para suas atividades incluindo farta cobertura na
imprensa , o que ajudava a atrair novos sócios, cujas mensalidades sustentariam suas
ações. Vale ressaltar que o CCC não tinha uma instituição por trás como o Centro de
6
Na coluna do crítico de cinema e humorista Leon Eliachar (1956), o início do CCC serviu de motivo para
ataque ao presidente da ABCC, com o clube sendo destacado como o trabalho de pessoas bem intencionadas,
que “acabarão de uma vez por todas com os pretensos ‘Farouks’ [referência ao opulento rei do Egito]
que de ‘menezes’ em ‘menezes’ ficam arrumando as suas semanazinhas de cinema”. Menezes era corpulento
(chegou a ser Rei Momo do carnaval carioca) e costumava ser acusado pelos seus detratores de se
preocupar com badalações, mundanismo e “cavações”, tais como mostras e festivais cinematográficos
bancados com recursos públicos. A esse respeito, ver também Vianna (1955).
Estudos Cinematográficos, que contava com o suporte do Diretório Acadêmico da
Faculdade Nacional de Filosofia, o que viabilizava o uso do Salão Nobre da faculdade,
dotado de projetores 35mm, e ajudava a custear a publicação dos boletins e o aluguel das
cópias (ARAÚJO, 2013, p. 28).
Cerca de um mês após o anúncio de sua criação pelos jornais, ocorreu a sessão
inicial do Centro de Cultura Cinematográfica. No programa inaugural, de 30 de junho de
1956, constam Flávio Manso Vieira como presidente e Décio Vieira Otoni, crítico do
Diário
Carioca
, como vice-presidente. A diretoria executiva era formada pelo jovem grupo de
amigos: George Gurjan, Carlos Fonseca e Arnaldo Arêas Coimbra. O restante do grupo
ocupava o cargo de primeiro secretário (Arley Sancier) e segundo secretário-tesoureiro
(Hugo Sérgio Koatz). para formar o conselho consultivo, foram convidados os principais
críticos cinematográficos profissionais do Rio de Janeiro dentre a ala considerada
“intelectualizada”: Moniz Vianna, Hugo Barcelos, Van Jafa, Alberto Dines, Ely Azeredo,
Luíz Alípio de Barros, Octávio Bonfim, Jorge Ileli e Alberto Shatowzky. O único membro do
conselho do CCC que não atuava profissionalmente como jornalista e crítico de cinema
era o representante do Departamento de Cinema do Museu de Arte Moderna, Ruy Pereira
da Silva.
O filme exibido no programa inaugural do CCC foi
Juventude Transviada
(
Rebel
Without a Cause
, dir. Nicholas Ray, 1955), em sessão à meia noite, para convidados, no
cine Caruso-Copacabana. Essa inauguração revela um começo prestigioso do CCC, com a
pré-estreia de um lançamento de Hollywood em um dos mais luxuosos cinemas da cidade
o que foi noticiado em vários jornais.
Desde sua primeira sessão, o CCC se destacou pelo esforço (e êxito) em manter
sessões regulares. De fato, durante dez meses, entre julho de 1956 e abril de 1957, foram
realizadas sessões praticamente toda semana, quase sempre obedecendo ao mesmo
formato: a projeção de um longa-metragem acompanhado por um ou dois curtas-
metragens. Cada sessão tinha um programa impresso com textos críticos sobre o filme,
geralmente assinado por um dos diretores do CCC, trazendo ainda informações sobre o
cineasta (incluindo sua biografia e filmografia) ou sobre o gênero do filme.
7
Esses
programas variavam de formato (mimeografados em folha inteira ou impressos em
formato de libreto) e eram distribuídos a todos os presentes, provavelmente em grande
7
A maioria dos textos foi assinada, em ordem decrescente, por Flávio, Arnaldo, Carlos, Hugo e George.
Alguns programas contavam com a transcrição de textos publicados na imprensa carioca por críticos
como Moniz Vianna, Hugo Barcelos e Décio Vieira, entre outros, assim como traduções de artigos
estrangeiros, por exemplo, da revista francesa
Cahiers du Cinéma
.
quantidade.
8
Para frequentar as sessões, era exigido que o membro do clube estivesse em
dia com a mensalidade de Cr$ 100,00.
Além da ficha técnica, sinopse e análise crítica dos filmes programados, o CCC logo
passou a publicar em seus programas algumas notícias, informações e comentários, que
se revelam cruciais para analisarmos os desafios e dificuldades práticas que um cineclube
enfrentava no Rio de Janeiro dos anos 1950.
O problema das cópias
Para funcionar, o CCC precisava, acima de tudo, de cópias de filmes para suas
sessões. Numa época muito anterior ao videocassete, DVD, internet ou
streaming
, os
cineclubistas buscavam cópias em película 16mm ou 35mm objetos relativamente caros,
volumosos e frágeis, além de potencialmente perigosos.
9
Em geral, o público carioca como, a rigor, o de todo o país assistia nas salas de
cinema comerciais somente aos filmes mais recentes lançados pelas companhias
distribuidoras. Após estrearem nas principais salas da cidade, as cópias eram exibidas nos
cinemas de bairro, sendo posteriormente alugadas aos cinemas do subúrbio e do interior,
menos lucrativos e sem condições de serem muito exigentes. Após finalmente saírem de
cartaz, o que levava alguns anos, as cópias eram geralmente destruídas, tanto por estarem
em péssimo estado depois de repetidas projeções, quanto para se evitar pirataria e reaver
algum dinheiro.
10
Apesar de eventualmente ocorrerem, eram pouco frequentes reprises ou
relançamentos de filmes antigos nos anos 1950, sobretudo nas melhores salas da cidade.
Assim, cineclubes como o CCC representavam uma importante alternativa para
espectadores terem acesso a filmes que não estivessem mais em exibição comercial.
Diante da crescente demanda e desejo da geração cinéfila do s-guerra em
cultivar uma cultura cinematográfica, os cineclubes eram necessários para se conhecer os
clássicos do passado e para ver (ou rever) os mais importantes títulos dos anos anteriores,
sobretudo para os espectadores mais jovens. A ideia que se popularizava de “cinema de
autor” incentivava ainda o desejo de se conhecer todos os filmes de determinado
realizador por meio da organização de retrospectivas orientadas pelo diretor das obras.
Mas onde conseguir essas cópias? Analisando os quarenta programas preservados na
8
De alguns programas constam mais de vinte cópias mimeografadas preservadas na coleção Carlos Fonseca.
9
Em 1956, certamente ainda estavam em circulação antigas cópias 35mm de nitrato de celulose, suporte
fabricado até 1951 e altamente inflamável. As cópias em 16mm, por sua vez, sempre foram feitas em suporte
não-inflamável.
10
A prata podia ser extraída da emulsão do filme para ser vendida, enquanto o suporte plástico era derretido
para feitura de diversos produtos. Walter Lima Júnior mencionou em entrevista fábricas de botões como
destino para cópias de filmes na época. O curta-metragem
Memória
(dir. Roberto Henkin, 1990) mostra o
derretimento de películas para transformação em piaçava numa fábrica de vassouras no sul do Brasil.
coleção Carlos Fonseca, assim como notícias na imprensa sobre as atividades do CCC, é
possível traçar um panorama dessa questão fundamental.
Em primeiro lugar, a grande maioria dos longas-metragens exibidos pelo CCC era
de filmes realizados nos quinze anos anteriores. Isto é, eram os clássicos recentes do
moderno cinema do pós-guerra, cujas cópias provavelmente ainda eram encontradas nas
prateleiras dos distribuidores brasileiros. Ao noticiar a criação do CCC em sua coluna no
Diário Carioca,
o crítico Décio Vieira Otoni (vice-presidente do cineclube) prometeu não
hesitar “em usar e abusar da boa vontade dos diretores de distribuidores em favor do novo
clube de cinema”, afirmando que ele e seus colegas jornalistas iriam se empenhar com
seus contatos “junto às companhias no sentido de fazer um levantamento de grupos de
obras de diretores cujos filmes ainda estejam em seus estoques” (OTONI, 1956).
Não surpreende, portanto, que dentre os quarenta longas-metragens exibidos pelo
CCC entre 1956 e 1957, apenas oito deles (20%) fossem anteriores a 1945.
11
Desses oito
títulos mais antigos, cinco eram filmes silenciosos, cujas cópias vieram (senão todas, em
sua maioria) da Filmoteca do MAM-SP transformada, nesse ínterim, em Cinemateca
Brasileira, desligando-se do museu.
12
A exibição de longas-metragens no CCC, em sua absoluta maioria, foi organizada
em séries temáticas. Dentre as quarenta sessões realizadas, duas das principais séries
foram dedicadas a gêneros: “Fantasia” (onze sessões) e “Clássicos do Western” (cinco
sessões). Foram realizadas também duas séries dedicadas a diretores do cinema
americano, Billy Wilder (seis sessões) e Elia Kazan (quatro sessões), além de uma “Breve
retrospectiva do cinema inglês” (quatro sessões).
Assim, além de concentrada em produções realizadas nos quinze anos anteriores,
a programação de longas-metragens também se restringia a poucos países: mais de 70%
dos títulos eram americanos e ingleses. Além deles, apenas os filmes franceses tiveram
11
A julgar pelas informações sobre o Centro de Estudos Cinematográficos compiladas por Luciana Araújo,
80% dos filmes exibidos nas 37 sessões do cineclube promovidas entre 1954 e 1956 também eram longas-
metragens lançados a partir de 1945, exatamente como no CCC (ARAÚJO, 2013, p. 32). Ou seja,
aparentemente era difícil o acesso, através das distribuidoras comerciais, a filmes anteriores ao pós-guerra
pelos cineclubistas.
12
Os filmes eram
O gabinete do Dr. Caligari
(
Das Cabinet des Dr. Caligari
, dir. Robert Wiene, 1920),
Os
bandeirantes
(
The Covered Wagon
, dir James Cruze, 1923),
O monstro do circo
(
The Unknown,
dir. Tod
Browing, 1927),
A paixão de Joana D’Arc
(
La passion de Jeanne D’Arc,
dir. Carl Theodor Dreyer, 1928),
Sangue
de um poeta
(
Le sang d’un poete
, dir. Jean Cocteau, 1932),
Um carnet de baile
(
Un carnet de bal
, dir. Jules
Duvivier, 1937),
Anjo
(
Angel
, dir. Ernst Lubitsch, 1937) e
O mágico de Oz
(
The Wizard of Oz
, dir. Victor
Fleming, 1939). Em um dos programas do CCC, era confirmado que
Os bandeirantes
e
O monstro do circo
foram exibidos “graças à cooperação do Sr. Caio Scheiley [
sic
], da Filmoteca do M.A.M., de São Paulo”. Além
desses dois,
O gabinete do Dr. Caligari
e
A paixão de Joana D’Arc
também foram seguramente exibidos pelo
CCC por meio das cópias do acervo da Filmoteca do MAM-SP, sendo que a cópia de
Caligari
teria sido
destruída no incêndio de 1957. Antes disso, porém, para o encerramento do “Ciclo Charles Chaplin”, o
boletim do CCC de setembro de 1956 anunciou o desejo de “pedir à Filmoteca do M.A.M. de o Paulo o
excelente filme de Chaplin
The Circus
(
O Circo
)”, o que parece não ter se concretizado.
presença significativa, com seis longas-metragens programados. O único filme italiano
exibido foi
Francisco, arauto de Deus
(
Francesco
,
giullare di Dio
, dir. Roberto Rossellini,
1950), uma das raras sessões não alinhadas a nenhuma série específica. No programa
dessa sessão era comentado que o filme havia sido lançado dois anos antes no Rio de
Janeiro, com distribuição da Art Films, sendo exibido apenas no Cine Rivoli e, por isso,
passando desapercebido dos cinéfilos. Esse motivo e a própria existência da cópia
justificavam sua exibição.
o único título soviético programado
A Flor de Pedra
(dir. Alexander Ptushko,
1946) era umas das cópias distribuídas no Brasil pela Swiss Film, no imediato pós-guerra,
antes da circulação comercial de filmes da URSS cessar por motivos políticos (FREIRE,
2011, p. 386-387).
Ou seja, apesar da presença de filmes de nacionalidades mais diversas nas salas de
cinema brasileiras no pós-guerra (FREIRE, 2011, p.383-388), mesmo um cineclube como o
CCC tinha uma programação baseada principalmente no cinema norte-americano. Embora
não aprofundemos essa questão nesse artigo, é importante frisar como o grupo por trás
do cineclube se alinhava a uma vertente da crítica brasileira, liderada por Moniz Vianna,
que manifestava preferência estética pelo cinema produzido em Hollywood. O interesse
recaía principalmente por diretores alinhados a uma nova geração do cinema americano
como Wilder e Kazan, objetos de retrospectivas pela CCC , sem a mesma adesão, como
a de outros críticos brasileiros, aos cineastas europeus, por exemplo, do neorrealismo
italiano ou, posteriormente, da Nouvelle Vague francesa (FREIRE, 2012).
O único longa-metragem brasileiro exibido pelo CCC foi o policial
Amei um bicheiro
(dir. Jorge Ileli e Paulo Wanderley, 1952), uma das eventuais produções dramáticas da
Atlântida, produtora célebre pelas comédias musicais conhecidas como chanchadas. Além
de ser um filme considerado “sério”, havia sido codirigido por um dos críticos da nova
geração, Jorge Ileli, membro do conselho do CCC. Entretanto, os agradecimentos a Cyll
Farney no programa da sessão dão a entender que a cópia foi conseguida junto ao ator do
filme, intérprete do protagonista de
Amei um bicheiro
, sendo pertencente talvez à sua
coleção pessoal, e não à produtora Atlântida ou à distribuidora U.C.B.
13
A exibição do
longa-metragem foi acompanhada do curta-metragem
Nordeste
(1950), documentário de
Pedro Lima. Trata-se também de um filme dirigido por alguém mais identificado como
crítico de cinema do que diretor.
14
13
Outro ator da Atlântida, o comediante Oscarito, também possuía cópias pessoais de alguns dos filmes em
que atuou, revelando não se tratar de uma prática excepcional.
14
Além de crítico de cinema e jornalista desde fins da década de 1910, Pedro Lima trabalhou, a partir dos
anos 1930, no Serviço de Informação Agrícola (SIA), órgão público que produziu
Nordeste
.
A questão da bitola é outro tema fundamental. A partir do Programa 7, de 13 de
agosto de 1956, os boletins do CCC passaram a publicar avisos como este: “Durante a
exibição de
The Big Carnival
haverá duas interrupções, por se tratar de cópia em 16mm”.
15
Desde o final dos anos 1940, as distribuidoras comerciais ampliaram o lançamento de
títulos nessa bitola, visando atender ao crescimento de espaços dotados de projeção
16mm, fossem salas comerciais ou cineclubes. Segundo o cineasta Walter Lima Júnior, as
mais frequentes fontes de cópias nessa bitola, no Rio de Janeiro, eram a Filmoteca Mesbla
o serviço de aluguel de filmes dessa loja de departamento e a distribuidora Citera,
especializada em cópias e projetores 16mm (Walter Lima Júnior, entrevista, 11 ago. 2020).
Além dos longas-metragens, o 16mm era definitivamente o suporte principal dos
curtas-metragens exibidos nas sessões do CCC. A origem dessas pias, porém, era
sobretudo dos serviços culturais das embaixadas, permitindo, assim, maior variedade na
nacionalidade dos títulos. Diferentemente dos longas, a maior parte dos curtas-metragens
era francesa, cerca de 40% do total de tulos exibidos pelo CCC, talvez por conta do
acervo mais amplo e de fácil acesso da Embaixada da França. Como bem destacou o
mesmo Walter Lima Júnior, o Brasil foi naquele momento inserido no circuito de
distribuição cultural, via embaixadas, de cópias de filmes franceses destinadas ao Uruguai
e Argentina.
Os gêneros dos curtas-metragens também eram mais diversificados do que os
longas-metragens (todos eles ficcionais), concentrando-se em documentários e
animações, mas incluindo também comédias silenciosas de Charles Chaplin. A Legação
Real da Dinamarca, por exemplo, cedeu a cópia do curta
Thorvaldsen
(dir. Carl Theodor
Dreyer, 1949), exibido conjuntamente do longa-metragem
A paixão de Joana D’Arc
(
La
Passion de Jeanne d'Arc
, 1928) na sessão especial em homenagem ao cineasta
dinamarquês. A Embaixada da Índia cedeu documentários sobre o país, enquanto a
Embaixada do Canadá foi a origem da recorrente exibição de animações do National Film
Board, sobretudo títulos dirigidos por Norman McLaren. Os filmes curtos de Chaplin, por
sua vez, eram alugados na já citada Filmoteca Mesbla.
Além das dificuldades para localizar cópias, a dependência de tantas fontes
diferentes gerava problemas. No programa de 7 de dezembro de 1956, o CCC pedia
desculpas pela troca de títulos na sua última sessão. “Por motivo de força-maior alegado
pela Filmoteca Mesbla”, o filme
Sobre rodas
(
The Rink
, 1916) foi exibido no lugar de
A casa
15
Para exibições de longas-metragens sem interrupção, a projeção de cópias 35mm, divididas em vários
rolos, era feita nos cinemas através de dois projetores, que eram acionados alternadamente. Mas nas salas
de exibições, em geral, raramente havia mais de um projetor 16mm disponível, o que obrigava a pausa para
troca de rolo.
de Penhor
(
The Pawnshop
, 1916), ambos estrelados por Chaplin. E por uma “troca de
filmes” efetuada, provavelmente por engano, pela Embaixada da Índia, foi exibido
Konarka
ao invés de
Music of India
.
Podemos perceber ainda como existia um conjunto restrito de locais onde os
cineclubistas podiam ter acesso a cópias se não possuíssem bons laços com distribuidoras
comerciais ou um acervo próprio como o da Filmoteca do MAM-SP. Afinal, tratava-se da
necessidade não apenas de obter cópias em bom estado, mas títulos de interesse e com
certo ineditismo ou exclusividade, o que era talvez ainda mais difícil. A maioria dos curtas-
metragens programados pelo CCC tinha sido exibida anteriormente na cidade, por
exemplo, pelo Departamento de Cinema do MAM-RJ, tanto em suas sessões regulares,
quanto no festival
10 Anos de Filmes sobre Arte
, vindo de São Paulo e realizado na capital
federal em fins de 1955.
16
Ou seja, não era fácil conseguir cópias de filmes interessantes que se destacassem
em relação à programação de outros cineclubes. Uma alternativa era negociar pré-estreias
de filmes inéditos com as distribuidoras comerciais, como ocorreu em sessões especiais
viabilizadas “graças à colaboração” da Warner Bros ou Metro-Goldwyn-Mayer, como
constam nos respectivos programas.
Exibindo, às vezes, cópias antigas, projetadas centenas de vezes no circuito
comercial, as projeções no CCC certamente sofriam com problemas decorrentes de danos
nas películas.
17
No Programa 5 (sem data, mas realizado entre julho e agosto de 1956), era
publicada uma “explicação necessária” a esse respeito:
Devemos aqui uma explicação aos associados do CCC: trata-se na verdade não
de uma desculpa, mas de algo que os sócios não podem ignorar o sacrifício que
fazemos para conseguirmos cópias em bom estado para uma perfeita exibição.
Ocorre, porém, que muitas vezes nos encontramos frente a um dilema qual seja
o de exibir um filme realmente importante para a história do cinema, mas com
cópia em mau estado, ou deixa-lo de exibir, por esta razão, perdendo-se uma
oportunidade que talvez não volte nunca mais... É um problema de grande
responsabilidade que temos em nossas mãos, mas que acreditamos resolvê-lo da
melhor forma, optando pela exibição do filme, qualquer que seja o estado de
conservação deste, ante a impossibilidade de conseguirmos melhor cópia.
16
Segundo entrevista com Ruy Pereira da Silva, a edição carioca do festival
10 Anos de Filmes sobre Arte
foi
maior que a paulista, contando não apenas com os cerca de cem filmes exibidos em São Paulo, mas também
com outras dezenas de novos títulos que foram oferecidos pelas embaixadas (“O público do Rio prestigia
tudo o que é bom”,
Diário de Notícias
, 13 nov. 1955, p.5). Essa afirmação se contrapõe ao que o próprio Ruy
relatou em entrevista na dissertação de José Quental (2010, p.91).
17
Após muitas projeções no circuito comercial, era comum que as películas apresentassem riscos e manchas,
além de danos nas perfurações que precisavam ser devidamente reparados antes da projeção. Era muito
comum ainda que eventuais danos na película levassem os projecionistas a cortar inteiramente os
fotogramas afetados, o que resultava em pulos” na imagem e som do filme durante a exibição da cópia
mutilada.
Mas as cópias não eram o único problema.
O problema das salas de exibição
A sessão de abertura do CCC, em junho de 1956, com a pré-estreia de
Juventude
Transviada
, ocorreu numa sala de cinema comercial. A exibição foi possível graças ao
apoio da empresa “D. V. Caruso e Filhos”, companhia exibidora proprietária do Cine
Caruso-Copacabana. Mas a sessão ocorreu à meia-noite, num horário que não perturbou
a programação normal do cinema. Tratava-se de uma parceria positiva, por meio da qual
o cineclube chancelava a pré-estreia de um longa-metragem hollywoodiano no circuito
comercial e vice-versa.
18
Após a sessão de abertura, as primeiras sessões regulares do CCC ocorreram no
Auditório Mesbla, no último andar da loja de departamentos, localizada na rua do Passeio,
na região do centro do Rio de Janeiro conhecida como Cinelândia pela concentração de
salas de cinema. A Mesbla tinha uma importante seção de produtos de cinema e fotografia,
não apenas alugando cópias de filmes em bitola estreita como indicado, mas também
vendendo câmeras, projetores e negativos para seus clientes.
Em pouco tempo, porém, as sessões do CCC mudaram de endereço. Na seção de
notícias publicada no programa 5, de julho-agosto de 1956, os membros do clube eram
informados que as duas sessões seguintes teriam seus dias alterados por precisarem ser
realizadas em um local diferente: o auditório da Maison de France, como era conhecido o
prédio da Embaixada da França. Ele ficava na avenida Presidente Antônio Carlos, a uma
curta caminhada de distância da Cinelândia, ainda no centro do Rio de Janeiro.
Após as exibições no auditório na Maison de France, entre agosto e setembro de
1956, as sessões do CCC prosseguiram regularmente no auditório Mesbla até 1 de fevereiro
de 1957 (programa 32), quando mudaram outra vez de local. Elas passaram a ocorrer, a
partir de 11 de fevereiro, no auditório da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), na rua
Araújo Porto Alegre, praticamente a meio caminho entre a Mesbla e a Maison de France.
Por fim, em abril de 1957, o CCC realizou suas últimas sessões no auditório do
Ministério da Educação e Cultura (MEC), quase ao lado da ABI, embora usando um
projetor 16mm cedido pela Embaixada da França, uma vez que o aparelho daquela sala se
encontrava quebrado.
18
Da mesma forma, a sessão especial de premiação dos melhores do ano de 1956, promovida pelo CCC em
parceria com a Sociedade Teatro de Arte (STA), ocorreu no dia 27 de abril de 1957, novamente no Cine
Caruso-Copacabana, com a exibição do premiado
Vidas amargas
(
East of Eden
, dir. Elia Kazan, 1955).
Podemos dizer, portanto, que o CCC foi um cineclube nômade, que teve dificuldade
de se estabelecer em um único espaço físico, passando por, pelo menos, quatro endereços
diferentes no centro do Rio de Janeiro ao longo de doze meses, sem contar as sessões
especiais em Copacabana. Mas que espaços eram esses?
A Mesbla e a Embaixada da França possuíam salas de projeção em seus prédios de
estilo arte déco e moderno, respectivamente. O prédio da Embaixada era bastante recente,
de 1956. O da Mesbla era mais antigo, mas o auditório no 11º andar abrira somente em 1955.
Ou seja, eram espaços de projeção novos, abertos havia bem pouco tempo.
Também em estilo moderno, o prédio da ABI era também mais antigo, tendo sido
inaugurado em 1938. Entretanto, o auditório localizado no andar da ABI só passou a ser
utilizado para projeção cinematográfica na segunda metade dos anos 1940.
19
Por fim, o edifício do MEC conhecido como Palácio Capanema era
considerado um verdadeiro marco da arquitetura brasileira moderna, tendo sido
inaugurado em 1947.
20
O fato é que a Maison de France, Mesbla, ABI e MEC eram quatro espaços próximos
entre si, localizados no centro do Rio de Janeiro, que não possuíam programação regular e
que contavam com seus próprios equipamentos de projeção e operadores. Inauguradas no
pós-Segunda Guerra, as quatro salas de projeção eram cedidas a (e disputados por)
diferentes iniciativas cineclubistas. Um dos usuários desses espaços era o citado
Departamento de Cinema do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Dirigido por Ruy
Pereira da Silva, ele tinha iniciado suas sessões em 7 de julho de 1955 no Auditório da ABI.
Pouco depois, organizou o festival
10 Anos de Filmes sobre Arte
, inaugurando justamente
o Auditório Mesbla.
21
Embora houvessem outros espaços também utilizados pelos cineclubes cariocas
em meados dos anos 1950 principalmente auditórios de prédios públicos, como os do
Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE) ou do Instituto de Aposentadorias e
Pensões dos Comerciários (IAPC) , havia uma larga concorrência entre essas iniciativas,
que raramente desfrutavam de espaços exclusivos ou próprios. Não gozando de completa
19
Foi em 1946 que o Departamento Cultural da ABI iniciou suas atividades com sessões cinematográficas na
sala de projeções do prédio da entidade (FREIRE, 2011, p. 440).
20
A ligação do movimento de cultura cinematográfica brasileiro do pós-guerra não apenas com a arte
moderna (por meio dos museus e bienais de arte), mas também com a arquitetura moderna, através dos
espaços onde os cineclubes eram localizados, é um tópico interessante para futuro desenvolvimento.
21
No mesmo 11º andar, ao lado da sala de projeção, ficava o restaurante Mesbla. Nesse sentido, o auditório
era frequentemente alugado para formaturas, coquetéis e recepções que faziam uso de ambos os serviços.
autonomia ou independência na organização de suas sessões, muitas vezes os cineclubes
ficavam à mercê de decisões alheias às suas vontades.
22
Percebemos, portanto, a dificuldade de um cineclube se manter e, mais ainda, se
diferenciar diante da escassez de cópias e espaços de exibição, sobretudo frente à
concorrência de outras iniciativas cinéfilas.
Retornando ao exemplo de São Paulo, é possível notar que a estrutura conquistada
pela Filmoteca do MAM-SP resultava em admiração, dependência e talvez aspiração pelas
iniciativas cariocas. Os programas do CCC são fartos em menções elogiosas e efusivos
agradecimentos a Paulo Emílio Salles Gomes, Rudá de Andrade, Caio Sheiby e à instituição
de modo geral. O caminho percorrido pelo Clube de Cinema de São Paulo formar acervo
e possuir sua própria sala de exibição (pelo menos enquanto durou a parceria com o MAM-
SP) parecia o caminho ideal de desenvolvimento ou mesmo a única forma possível de
sobrevivência para um cineclube. Ter um espaço de projeção e acervo de filmes garantia
autonomia, exclusividade e independência. Isto é, tornar-se uma cinemateca, mas tendo a
exibição e não a preservação de filmes como foco e motivação originais e principais.
Do CCC à Cinemateca do MAM
Se a Cinemateca do MAM, como uma das mais influentes entidades culturais do
país, mereceu pesquisas nos quais o CCC não ganhou maior destaque, é revelador olhar
essa trajetória por outro ponto de vista, o do cineclube. Afinal, desde o início das atividades
do CCC, a disposição daqueles jovens chamou atenção de Ruy Pereira da Silva, à frente do
Departamento de Cinema do Museu de Arte Moderna. Após seu retorno de uma
temporada na França e disposto a criar uma cinemateca em sua cidade, o carioca Ruy
apresentou o projeto a Niomar Moniz Sodré, diretora-executiva do MAM-RJ, que lhe deu
aval para iniciá-lo por volta de 1953. Embora a intenção de criar de uma filmoteca
estivesse presente na ata de fundação do museu, em 1948, somente Ruy conseguiu
verdadeiramente transformar esse desejo em realidade a partir de 1955.
Entretanto, sem contar efetivamente com grande estrutura ou respaldo financeiro
do MAM-RJ, cuja sede ainda estava em construção (que, por isso, funcionava
provisoriamente no edifício do MEC), Ruy vinha enfrentando dificuldades para manter a
regularidade das sessões do Departamento de Cinema, trabalhando sem salário. Além
disso, ao longo de 1956, Ruy teve desentendimentos com Paulo Emílio Salles Gomes, então
já à frente da Filmoteca do MAM-SP, que manifestava receio da possível concorrência por
22
Devido a problemas técnicos crônicos dos projetores do Salão Nobre da Faculdade Nacional de Filosofia,
mesmo o CEC também realizou sessões nos auditórios do MEC e do INCE entre 1955 e 1956, por exemplo
(ARAÚJO, 2013, p. 28).
recursos públicos por parte da iniciativa carioca (QUENTAL, 2010, p.95-106). De qualquer
forma, transformada em Cinemateca Brasileira em fins de 1956, a instituição paulista
entrou numa fase especialmente difícil após o incêndio que destruiu grande parte de seu
acervo, em janeiro de 1957. Deixando ainda de dispor dos recursos financeiros do MAM-
SP, Ru de Andrade passava a ser, em agosto daquele ano, o único funcionário
remunerado da instituição paulista, que contava com o trabalho voluntário de outros
integrantes da Cinemateca (CORREA JÚNIOR, 2010, p. 166-8).
Nesse contexto, Ruy percebeu a importância de somar esforços com jovens
cineclubistas como os do CCC não apenas para alavancar o Departamento de Cinema,
como transformá-lo numa Cinemateca. Tratava-se da necessidade ainda de não depender
mais tanto do acervo da instituição paulista, tanto por conta dos desentendimentos
anteriores e da disputa pelos mesmos filmes com outros cineclubes, quanto por causa da
crise após o incêndio que levou a Cinemateca Brasileira a suspender temporariamente o
empréstimo de cópias, muitas delas destruídas pelo fogo. Além disso, a aliança com o CCC
mostrava-se necessária para ampliar as atividades do Departamento de Cinema do MAM-
RJ e fazer frente às investidas de Paulo Emílio no Rio de Janeiro, que haviam se tornado
evidentes na colaboração estabelecida, ainda em 1956, entre a Filmoteca do MAM-SP e o
recém-criado Museu de Arte Cinematográfica (MAC), iniciativa que teve vida ainda mais
curta que o CCC.
23
Já para o grupo de Fonseca, a aliança com o Departamento de Cinema do MAM-RJ
era a chance de ampliar suas ambições num contexto de concorrência e dificuldade de
sobrevivência para os muitos (e efêmeros) cineclubes cariocas. Dificuldades que, como
demonstramos, encontrava-se especialmente na disponibilidade e acesso a cópias e
espaços de exibição.
Não se tratava apenas de uma parceria estratégica em função de necessidades e
objetivos práticos comuns. O Departamento de Cinema do MAM-RJ e o CCC, isto é, Ruy,
Fonseca, Flávio e Arnaldo, compartilhavam também afinidades estéticas e políticas,
relevantes no polarizado contexto da Guerra Fria. Em comum, tinham Moniz Vianna como
principal referência crítica, dividindo com ele a admiração pelo cinema de Hollywood,
clássico e moderno, assim como o anticomunismo. de se destacar, por exemplo, a
relação amistosa e colaborativa estabelecida entre Ruy e Harry Stone, representante da
23
O nome Museu de Arte Cinematográfica, além de pretensioso, tinha estranha e suspeita semelhança com
o do também chamado “Cinema do Museu”, como era conhecido o Departamento de Cinema do MAM-RJ,
provocando a indignação de Ruy Pereira da Silva. À frente do MAC estavam Dejean Magno Pellegrini e
Claudio Rocha, embora a imprensa também cite a participação de José Sanz, que viria a ser justamente o
pivô da saída de Ruy da Cinemateca do MAM, em 1958.
Motion Picture Association (MPA) e presidente da Associação Brasileira de Cinema (ABC),
que reunia as grandes distribuidoras americanas atuantes no Brasil. Stone viria a ser
considerado “espião de Hollywood” e principal “inimigo” do cinema brasileiro pelos
cinemanovistas.
24
Aliás, ao partirem para a produção cinematográfica nos anos 1960, Ruy
e Carlos fizeram parte do que pode ser chamado de “cinema conservador carioca”, em
evidente antagonismo ao Cinema Novo (FREIRE e FRÓES, 2020).
25
O historiador José Quental (2010, p. 106) relatou os bastidores da fusão entre o CCC
e o Departamento de Cinema, quando um representante do MAM-RJ, Henrique Mindlin,
serviu para amenizar os desentendimentos anteriores entre Paulo Emílio e Ruy Pereira:
Às vésperas do Natal de 1956 realiza-se, finalmente, uma reunião no Rio de
Janeiro, na casa de Henrique Mindlin, com a presença de Ruy Pereira da Silva,
Paulo Emílio Salles Gomes, Niomar Moniz Sodré e os três responsáveis pelo
Centro de Cultura Cinematográfica Carlos Amaral da Fonseca, Armando Arêas
Coimbra e Flávio Manso Vieira. Nessa reunião, foi acertada [...] a assimilação do
Centro de Cultura Cinematográfica pelo setor de Cinema do MAM-RJ, com o
objetivo de angariar forças para a consolidação do projeto da Cinemateca do
MAM.
Se a junção do CCC com o Departamento de Cinema do MAM-RJ foi realmente
selada no natal de 1956, o anúncio público dessa decisão demorou algumas semanas.
Talvez tenha havido certa hesitação de Fonseca e seus colegas em darem fim definitivo ao
CCC com sua assimilação por uma entidade maior e mais respeitada, o que também
ocorreu na época do segundo Clube de Cinema de São Paulo em relação ao MAM-SP. Ou
talvez fosse o tempo necessário para realizar as atividades planejadas pelo cineclube
em atendimento aos seus sócios. Afinal, somente no programa 35 do CCC, de 28 de
fevereiro de 1957, foi divulgado o convite feito a sua diretoria, pelo Departamento de
Cinema do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, “para integrar o seu Conselho
Diretor”, examinando a possibilidade de “fusão das duas entidades para o estabelecimento
de uma organização única e sólida”, unindo esforços com a pretensão de futuramente criar
“a Cineteca do Rio de Janeiro”. Curioso notar, tal como ocorreu em São Paulo, o nome
provisório para o arquivo de filmes, ainda sem referência ao museu.
24
Harry Stone chegou ao Brasil em 1953 e colaborou com a realização do Festival História do Cinema
Americano, organizado pelo MAM-RJ, em 1958. Posteriormente, Harry Stone viria a ser sócio minoritário da
produtora Procine, de Ruy Pereira e Carlos Fonseca.
25
Ainda na ocasião da exibição de
Amei um bicheiro
no CCC, o boletim do cineclube destacou o longa-
metragem como parte do que “o cinema nacional tem de melhor o filme de Ileli-Wanderley,
O Cangaceiro
e
Floradas na Serra
”. Ou seja, o grupo reunido no CCC valorizava a produção clássico-narrativa de caráter
industrial (da Atlântida e Vera Cruz) que se oporia ao cinema independente e autoral com o qual o Cinema
Novo seria identificado.
Num dos últimos programas do CCC, de 8 de abril de 1957, seus realizadores
fizeram um balanço de suas ações, se orgulhando de terem realizado, ao longo de quase
um ano, mais de 40 sessões e exibido mais de 60 filmes, entre curtas e longas-metragens,
“índice esse bastante raro na normalidade dos cineclubes de qualquer país”. A união
definitiva ocorreria logo depois, na pré-estreia do filme
Sede de viver
(
Lust for life
, dir.
Vincente Minnelli, 1956), exibido no dia 22 de abril no luxuoso cine Metro-Passeio, em
sessão comemorativa, à meia-noite, pela fusão do CCC e MAM-RJ.
A partir de abril de 1957, portanto, Carlos, Flávio e Arnaldo se incorporaram
oficialmente à equipe do Departamento de Cinema do MAM-RJ, participando de sua
administração e da organização das sessões e redação dos programas, inicialmente sem
salário algum. É um momento crucial para a instituição e representa também um salto na
carreira de Fonseca, que passou a conviver e trabalhar junto com seu ídolo Moniz Vianna
e outras figuras influentes do meio cultural carioca. Tal como também se dava naquele
momento em São Paulo no caso, por exemplo, de Caio Scheiby, que trabalhava no acervo
da TV Tupi para compensar a falta de salário na Cinemateca Brasileira , o trabalho não
remunerado em preservação audiovisual buscava ser compensado com outros empregos.
Embora Carlos Fonseca não recebesse salário na Cinemateca do MAM (seu sustento vinha
do mercado da família, em Copacabana), foi por meio dos contatos estabelecidos na
instituição que ele conseguiu suas primeiras oportunidades profissionais como crítico de
cinema na imprensa carioca, assim como um emprego formal, posteriormente, na Shell.
Segundo Quental (2010, p. 107), 1957 foi um ano-chave no processo de
consolidação da Cinemateca do MAM. [...] As duas primeiras novidades apresentadas, de
forma concomitante em janeiro de 1957, foram a mudança da periodicidade das sessões de
cinema, que passaram a ser semanais, e a publicação de um boletim mensal específico para
a área de cinema do Museu”. Em complemento à história traçada por Quental, nos parece
evidente, pela análise da documentação do CCC, que esse processo de consolidação da
Cinemateca do MAM-RJ em 1957 só foi possível graças à incorporação dos integrantes do
CCC ao museu, dando mais fôlego a Ruy Pereira da Silva e Antonio Moniz Vianna. Os dois
podiam traçar planos mais ambiciosos contando com a retaguarda de jovens cinéfilos,
dinâmicos e ativos que botavam a mão na massa para manter a programação regular de
sessões, algo trabalhoso, mas fundamental para a concretização de seus planos.
Com Fonseca e seus amigos assumindo o trabalho cotidiano (sessões, boletins,
correspondência, divulgação), Ruy pôde se dedicar com mais vigor à política. Assim,
acompanhado de Moniz Vianna, ele deixou a rotina no segundo semestre de 1957 para
empreender uma viagem estratégica à Europa e Estados Unidos. Na França, a dupla
participou do Congresso da FIAF, em Antibes, onde foi apresentada a proposta de filiação
do Departamento de Cinema do MAM-RJ, agora oficialmente Cinemateca do MAM, à
federação. A continuidade da viagem a outros países da Europa e, principalmente, aos
Estados Unidos, serviu para consolidar os apoios necessários para a realização, no ano
seguinte, do histórico Festival História do Cinema Americano. O evento de 1958 teve como
um de seus principais atrativos a vinda do exterior de cópias 35mm de clássicos, tais como
a de
Cidadão Kane
(
Citizen Kane
, dir. Orson Welles, 1941), redescoberto por toda uma nova
geração de cinéfilos ao ser exibido pela primeira vez no Brasil desde o seu lançamento
comercial, quase duas décadas antes (Walter Lima Júnior, entrevista, 11 ago. 2020).
26
Importante notar que o Festival História do Cinema Americano teve um perfil talvez
mais semelhante à programação do CCC do que a do Departamento de Cinema do MAM
em sua fase inicial. Além disso, o evento realizado entre 25 de julho e 31 de agosto de 1958
e que marcou a criação da Cinemateca do MAM foi organizado de modo a suprir as
principais dificuldades práticas encontradas tanto pelos cineclubistas quanto por Ruy o
acesso a cópias e salas de projeção –, sem depender da “rival” Cinemateca Brasileira. Por
intermédio dos contatos estabelecidos nos EUA, o Festival História do Cinema Americano
contou com o empréstimo de boas cópias de filmes clássicos e inéditos vindas diretamente
dos estúdios de Hollywood e da Film Library do MoMA (Museu de Arte Moderna de Nova
York), que causaram enorme furor dentre os espectadores cariocas. Diante da qualidade
e ineditismo da programação, o festival pode ocorrer, tal qual as pré-estreias do CCC, nas
melhores salas de cinema da cidade, proporcionando grande renda para o museu por meio
da venda de assinaturas para o evento.
Em 1958, dias antes do início do Festival História do Cinema Americano, Ruy deu
uma longa entrevista ao
Jornal do Brasil
reconhecendo a importância do CCC para aquela
conquista:
O CCC, desde o início, reuniu críticos e interessados numa atmosfera de salutar
equilibro, tão indispensável ao início de um movimento cineclubístico bem
orientado. Souberam os diretores do CCC unir-se ao Cinema do Museu a tal
ponto que nos levou, meses mais tarde, à proposta tão interessante quão
oportuna de fundirmos as nossas atividades e organizarmos desde logo a equipe
da futura Cinemateca do Museu. Em Carlos Amaral da Fonseca, Flávio Manso
Vieira e Arnaldo Arêas Coimbra, ganhou o então Museu de Arte Moderna do Rio
de Janeiro, elementos do maior valor para o desenvolvimento ativo de suas
atividades e de todos os seus imediatos projetos (1ª MOSTRA, 1958).
26
Os filmes eram exibidos em versão original em inglês, sem legendas em português, o que atesta seu
direcionamento para um público restrito.
O modelo “cópias vindas do exterior” e “salas de cinema comerciais” – que também
havia sido utilizado no I Festival Internacional do Cinema, em São Paulo, quatro anos antes
foi repetido pela Cinemateca do MAM nos festivais dedicados à história do cinema
francês (1959), italiano (1960) e russo e soviético (1961), mesmo com a saída de Ruy e
Fonseca devido a desentendimentos com Moniz Vianna, ainda em fins de 1958.
27
A
Cinemateca do MAM seguiu no processo de constituição de um acervo e sala de projeção
próprios.
28
Como ocorreu com o Clube de Cinema de São Paulo, o Centro de Cultura
Cinematográfica desapareceu para renascer como cinemateca.
Mais do que uma mera inversão de ponto de vista na descrição do desenvolvimento
da Cinemateca do MAM-RJ, um dos objetivos deste artigo foi destacar, em sua origem,
a especificidade das cinematecas latino-americanas, das quais a Cinemateca Brasileira e a
Cinemateca do MAM são dois exemplos notáveis, por seu foco central na exibição e não
apenas na preservação de filmes. Por outro lado, ressaltando as ligações do cineclubismo
com o campo da preservação de filmes, indicamos outro aspecto de sua importância na
história do cinema no Brasil para além de seu já conhecido papel na formação de futuros
cineastas.
Mais do que isso, o exemplo do CCC revela a multiplicidade de matizes ideológicas
que perpassava a juventude cinéfila carioca dos anos 1950, colocando em questão a visão
que a identifica quase exclusivamente como berço do Cinema Novo, movimento ligado ao
espectro político de esquerda. Uma hipótese é que esse entendimento decorra, em parte,
da “relativa hegemonia cultural de esquerda” estabelecida no Brasil posteriormente, nos
anos 1960 (SCHWARZ, 1978). Afinal, um dos criadores do CEC da FNF, Saulo Pereira de
Melo mencionou as discussões que travou, ainda nos anos 1950, com seus colegas
“comunistas” entre eles, Joaquim Pedro de Andrade por sua aversão aos filmes
neorrealistas e pela sua intenção de exibir longas-metragens comerciais considerados por
eles “fascistas”. Saulo afirmou que mais tarde, após sua saída, o CEC assumiu “uma
orientação francamente esquerdista” (ARAÚJO, 2013, p. 28-29). De forma semelhante,
seria apenas a partir de 1965, quando o cineclubista filiado ao Partido Comunista
Brasileiro, Cosme Alves Neto, assumiu a direção da Cinemateca do MAM, que a instituição
mudou de direção, consolidando-se, tal qual outras cinematecas latino-americanas, num
espaço de difusão cultural, sociabilidade e eventual proteção para espectadores e
27
Sobre a saída de Ruy, Fonseca, Flávio e Arnaldo da Cinemateca do MAM, ver Freire e Fróes (2020, p. 472)
28
Em 1958, o MAM inaugurou o chamado Bloco-Escola, para onde foi transferida a sede do museu e chegou
a ser criada uma sala de projeções 16mm (segundo lembranças de Walter Lima Júnior), embora as sessões
regulares continuassem na ABI e Maison de France. Em 1964, foi aberta a sala oficial da Cinemateca, com
projeção 35mm, no recém-inaugurado Bloco de Exposições.
cineastas identificados como opositores ao regime ditatorial instalado no ano anterior
(NÚÑEZ, 2018).
Portanto, é importante, em trabalhos futuros, que os historiadores concedam a
devida atenção à não irrelevante presença de uma ideologia de viés conservador desde as
origens do campo da preservação audiovisual no Brasil em sua relação próxima com o
cineclubismo e, consequentemente, nas suas possíveis manifestações na
contemporaneidade , assim como às condições materiais envolvidas na criação e
funcionamento dessas entidades, representadas, neste artigo, pela cópias de filmes e salas
de projeção.
Referências
1ª MOSTRA Internacional de arte cinematográfica. Festival a história do cinema norte-
americano. Rui Pereira da Silva fala sobre o Festival e a Cinemateca do Museu
. Jornal do
Brasil
, 15 jun. 1958, p. 5.
ADAMATTI, Margarida Maria.
A crítica cinematográfica e o
star system
nas revistas de
fãs: A Cena Muda e Cinelândia (1952-1955).
2009. Dissertação (Mestrado em Ciências da
Comunicação) Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo,
2009.
ARAÚJO, Luciana Corrêa de.
Joaquim Pedro de Andrade: primeiros tempos
. São Paulo:
Alameda, 2013.
BERNARDET, Jean-Claude.
Cinema brasileiro: propostas para uma história.
Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1979
BERNARDET, Jean-Claude.
Historiografia clássica do cinema brasileiro.
São Paulo:
Annablume, 1995.
COLEÇÃO de programas do Centro de Cultura Cinematográfica, 1956-1957. Cinemateca
do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Coleção Carlos Fonseca, Rio de Janeiro,
Brasil.
CORREA JÚNIOR, Fausto Douglas.
A Cinemateca Brasileira: das luzes aos anos de
chumbo
. São Paulo: Unesp, 2010.
CUNHA, Ângela Regina. Antonio Moniz Viana. In: RAMOS, Fernão; MIRANDA, Luiz
Felipe.
Enciclopédia do cinema brasileiro
. São Paulo: Senac, 2000.
ELIACHAR, Leon. Café Soçaiety.
Penúltima Hora
, Rio de Janeiro, 2 jul. 1956.
FREIRE, Rafael de Luna.
Carnaval, mistério e gangsters: o filme policial no Brasil (1915-
1951
). 2011. Tese (Doutorado em Comunicação) Instituto de Arte e Comunicação Social,
Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2011.
FREIRE, Rafael de Luna. Chanchada, filme policial e Roberto Farias: observações sobre o
cinema comercial brasileiro e a nova geração de cineastas. In: CHALUPE, Hadija;
SIMPLÍCIO NETO (orgs.).
Os múltiplos lugares de Roberto Farias.
Rio de Janeiro: CCBB:
Jurubeba Produções, 2012.
FREIRE, Rafael de Luna; FRÓES, Natália Teles da Silva. Carlos Fonseca e o cinema
conservador carioca.
Revista ECO-Pós
, Rio de Janeiro, v. 23, n. 1, p. 460483, 2020.
GALVÃO, Maria Rita Eliezer.
Companhia Cinematográfica Vera Cruz: fábrica de sonhos
.
1976. Tese (Doutorado em Linguística e Letras Orientais) Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1976.
GATTI, André. Cineclube. In: RAMOS, Fernão; MIRANDA, Luiz Felipe.
Enciclopédia do
cinema brasileiro
. São Paulo: Senac, 2000.
LIMA JÚNIOR, Walter. Entrevista concedida a Hernani Heffner. Rio de Janeiro RJ, 3 jul.
2020. Disponível em: https://vimeo.com/560504337
LIMA JÚNIOR, Walter. Entrevista concedida a Rafael de Luna Freire, por telefone. 11 ago.
2020.
MENDONÇA, Leandro.
A crítica de cinema em Moniz Vianna.
Rio de Janeiro: Edições
LCV, 2009.
NÚÑEZ, Fabián. Reflexões sobre a Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro na
virada dos anos 1960 aos 1970.
Significação
, São Paulo, v. 45, n. 50, p. 143-158, 2018.
O PÚBLICO do Rio prestigia tudo o que é bom,
Diário de Notícias
, Rio de Janeiro, p. 5, 13
nov. 1955.
OTONI, Décio Vieira. Lançamento: Centro de Cultura Cinematográfica,
Diário Carioca
,
Rio de Janeiro, 30 jun. 1956.
QUENTAL, José Luiz de Araújo.
A preservação cinematográfica no Brasil e a construção
de uma cinemateca na Belacap: a Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de
Janeiro.
2010. Dissertação (Mestrado em Comunicação) Instituto de Arte e
Comunicação Social, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010.
SCHWARZ, Roberto. Cultura e política, 1964-1969. In:
O pai de família e outros estudos
.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
SOUZA, Carlos Roberto de.
A Cinemateca Brasileira e a preservação de filmes no Brasil.
2009. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) Escola de Comunicações e
Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.
VIANNA, Antonio Moniz. Golpismo, confusão e Tônia não é rainha.
Correio da Manhã
,
Rio de Janeiro, p. 11, 14 mai. 1955.
ZANATTO, Rafael Morato.
Paulo Emílio e a Cultura Cinematográfica: crítica e história na
formação do cinema brasileiro (1940-1977).
2018. Tese (Doutorado em História)
Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2018.