ETO, Paulo Henrique Ennes de Miranda*
https://orcid.org/0000-0003-2230-0963
Resumo: O presente artigo procura levantar
um balanço introdutório o qual aborda
algumas das várias temáticas presentes na
cidade baixo-medieval. Nesse processo,
busca-se estreitar tais temas a uma análise
de caso muito cingida na pesquisa que o
autor tem desenvolvido sobre leis urbanas
medievais portuguesas. Com isso, virá a se
elencar o caso das Posturas Antigas de
Évora, um conjunto de normas locais
produzidas em Évora desde do último
quartel do século XIV. Essa documentação
por muito abarca vários aspectos gerais que
são estudados no grande tema das urbes
nos últimos séculos da Idade Média. Nesse
sentido, serão articulados entre a
bibliografia e a documentação, o tema das
espacialidades, das relações de poder e de
trabalho, bem como os da organização
administrativa desses centros urbanos
medievais, em especial o caso de Évora
junto a suas posturas urbanas.
Palavras-chave: Baixa Idade Média; Reino
de Portugal; Cidades; Évora
Abstract. This paper aims to present an
introductory balance sheet which
addresses some of the several thematics
present in the low Middle Age city. In this
process, I aim to approach such themes in
an analysis of case enfold the research that
I have developed about the Portuguese
medieval urban laws. Thereby, I intend to
list the Ancient Posturas of Evora, a set of
local rules made in Evora since the last
quarter of the 14th century. This
documentation in many cases, addresses a
lot of general aspects that are studied in the
great thematic of the cities in the last
centuries of the Middle Ages. In this sense
Its urban postures are going to be
articulated between the bibliography and
the documentation, the thematic of the
spatialities, the relations of work and
power, as well the administrative
organization of those medieval urban
centers, in special the case of Evora along
with its urban postures.
Keywords: Late Middle Ages; Kingdom of
Portugal; Cities; Evora
Recebido em: 23/03/2021
Aprovado em: 13/01/2022
* Graduando em História na Universidade Federal Fluminense, Niterói-RJ, e orientando do Prof. Dr.
Mário Jorge da Motta Bastos. Bolsista de Iniciação Científica PIBIC CNPq/UFF. E-mail:
pauloennes@id.uff.br
Este é um artigo de acesso livre distribuído sob licença dos termos da Creative Commons Attribution License.
Introdução
De início, pretende-se em um caminho introdutório no presente artigo, erigir
elementos definidores das cidades tardo-medievais, os quais serão abordados no
corpo do texto a partir de um amplo arcabouço historiográfico sobre o tema. Do
mesmo modo, intentar-seem um segundo momento, problematizar tais elementos
numa articulação aproximada com uma análise de caso mais circunscrita a pesquisa
a qual tem-se desenvolvido ao longo de minha Iniciação Científica. Dessa maneira,
busco mobilizar uma aproximação às conjunturas citadinas existentes no reino de
Portugal no século XIV, mais precisamente na cidade de Évora, usando por base, uma
fonte regimental desse mesmo século (
O Livro das Posturas Antigas de Évora
) com
os elementos definidores de poder presentes nas cidades medievais, de modo a
levantar questões proemiais que se atravessam nos estudos sobre a urbanidade no
medievo tardio.
Adentrando no tema das cidades no período (baixo)medieval, estas se
encaixavam nessa conjuntura enquanto centros de (relativamente) elevadas
concentrações demográficas em meio a um vasto e dominante horizonte agrícola e
rural. De fato, os dois meios, a cidade e a zona rural que a circunscreve, na realidade
são entidades complementares e não-antagônicas nas relações estabelecidas entre
si (GUERRERO NAVARRETE, 1989, p. 17). Karl Marx abordando a Idade Média em sua
tese, definiu a cidade e o campo como meios opostos no âmbito econômico, os quais
divergem em suas funções nas relações de produção, ao passo que o fenômeno
urbano na Idade Média se comportou enquanto um agente catalizador de mudanças
no processo de transição do modo de produção feudal para uma emergência
gradativa do capitalismo (BARROS, 2007, p. 61). Em um enquadramento de análise
mais voltado às cidades antigas, o historiador britânico Moses Finley, ao abordar o
tema urbano na sua obra
Economia e Sociedade na Grécia Antiga
(1989), referiu-se
às urbes medievais na perspectiva de que o lucro e a interpenetração da cidade e do
campo se comportavam de maneira recíproca (FINLEY, 2013, p. 7). Utilizando-se de
referenciais clássicos sobre o tema, como os estudos do historiador belga Henri
Pirenne e do sociólogo alemão Werner Sombart. Finley, tratando das cidades
medievais, não as compreendeu como “centros consumidores” habitados por
aristocratas exploradores da terra e detentores de latifúndios, como bem ocorria na
Antiguidade clássica. Segundo o mesmo, a
urbs
na Idade Média se configurava a
partir de referenciais jurídicos, no resguardo da clivagem entre produtores e
consumidores, que nesse contexto faziam dos centros urbanos, áreas de consumo
de excedentes, concentrações populacionais que estavam sob a alçada de jurisdições
e de tributos, rendas e impostos², reivindicados pelo mando de senhorios ou
magnates locais (FINLEY, 1989, pp. 14-15).
Contudo, um fator que não deve ser ignorado, é de que as cidades são
entidades involucradas por seu próprio tempo, ou seja, estão imersas em sua própria
realidade social e contexto histórico. José D’Assunção Barros ao apontar os
desdobramentos materiais e espaciais que decorreram da expansão demográfica na
Idade Média Central (Séculos XI-XIII), destaca os novos moldes das cidades nessa
altura, como as novas formações e modos de sociabilidades e materialidades. O
enquadramento do modo de vida citadino pelas balizas amuralhadas ou pelo
denominado "urbanismo fechado” condicionado à vida nos intramuros”, o qual fez
com que se reconfigurassem os fatores que delimitam o chamado mundo urbano e o
periurbano (BARROS, 2013, pp. 16-17). No âmbito de Évora compreendemos essa
relação existente entre a cidades e seus marcos amuralhados a partir da construção
de uma nova muralha no século XIV - desde 1350 no reinado de D. Afonso IV - a qual
substituiria a função da antiga cidadela formada pela cerca romano-goda. Ao longo
do desenvolvimento orgânico dessa cidade na Idade Média Central, os seus
arrabaldes se tornaram populosos, como a aljama, a Judiaria, a Mouraria de São
Mamede junta instalação de Conventos (o de São Francisco e de São Bento de
Castris) bem como se desenvolveu um recrudescimento radial do antigo núcleo
romano até os perímetros da Cerca Nova junto as suas Portas, como a da Moura e a
Praça do Alconchel (atual Praça do Giraldo) (SIMPLÍCIO, 2003, pp. 367-368).
O alargamento de várias muralhas que abraçavam as cidades e vilas pelo
Ocidente medieval ao longo do século XIV, ou a elevação de muros de cinturões mais
amplos em substituição das cercas erguidas outrora que jaziam em ruínas
1
, implica
as demandas inerentes ao crescimento demográfico e habitacional das cidades (LE
GOFF, 1992, p. 2). Jacques Le Goff caracteriza as cidades medievais como urbes
“mescladas”, inseridas em uma matização entre a malha urbana com o campo ou
ambiente rural que as circunscreve. Diante das ameias e das muralhas, havia
plantações, zonas de cultivo, prados, áreas de pastoreio, zonas ermas e, é claro,
populações camponesas. Com isso, a relação
urbs/rus
se comportava de modo
complementar e “unificado” e não de maneira antagônica (LE GOFF,1992, p. 15).
Évora no decorrer do século XIV por exemplo, dependia essencialmente de seus
1
Fernand Braudel concebia o urbanismo medieval, tal como um urbanismo de aspecto “fechado”, isso
nos remete as muralhas e também a uma economia e política mais concêntrica ao interior das
muralhas (BARROS, 2007, p. 24).
entornos de pastagens, olivais, cereais e sobretudo da criação de vários animais para
sua subsistência (FEIO, 2017, p. 52).
Nessa perspectiva, Le Goff define as urbes do medievo como eixos de
justaposição de poderes, polos concêntricos de influência perante as demais
coletividades. Sendo assim, emergiam modos de clientelismo afirmados em camadas
justapostas, relações verticalizadas entre as elites senhoriais, a burguesia mercantil,
o poder eclesiástico e por sua vez, os artesãos e camponeses (LE GOFF,1992,
p.16). Nesse sentido, João Bernardo aborda o tema das cidades insistindo na
constituição das formas de poder impessoal e associações de poder de caráter
alargado durante o período definido como Idade Média
2
. O autor considera que a
diferenciação manifestada no meio urbano não é essencialmente material, tal como
o marco das muralhas, mas sim social (BERNARDO, 1995, p. 366). Em sua hipótese,
a partir de um quadro amplo das cidades, o autor conceitua a aristocracia citadina
ou as famílias oligárquicas que habitavam o setor urbano, como uma elite ampliada,
um “senhor coletivo”, o qual logo se tornou um
corpus
administrativo com um
semblante cada vez mais impessoal, tal como uma grande família artificial moldada
por laços de subordinação e vínculos de dependência (BERNARDO, 1995, p. 374).
Seja pela influência ou pela ascendência de um magnate laico ou eclesiástico,
como um bispo ou conde, a configuração de um “senhorio urbano” supunha que o
dignatário detivesse uma rede de domesticidades e clientelas em torno de si. Sendo
assim, foi necessária a formação de agentes senhoriais e igualmente a constituição
de assembleias em que esses dispusessem o próprio exercício do poder.
(BERNARDO, 1995, p. 374). Tendo em vista esses desdobramentos, o que definia
propriamente uma cidade em sua afirmação como um centro dominial não era a
muralha, nem tampouco suas balizas de perímetro, mas sim o nível de participação
dos indivíduos em sua rede de coletividades intestinas. Quem não se situava no
centro dessas coletividades, logo era deslocado ao limiar das domesticidades,
justamente na condição de servos, artesãos
ou a arraia-miúda (BERNARDO, 1995, p.
375).
Segundo o
Livro das Posturas Antigas de Évora
, documentação elaborada
entre 1375-1395 -a qual é percorrida mormente em minhas pesquisas- essas redes de
clientelismo e subordinação se afirmavam a partir da disciplina dos ofícios imposta
2
João Bernardo é um historiador português de linha marxiana, dirigiu sua Obra “Poder e Dinheiro, Do
Poder Pessoal ao Estado Impessoal no Regime Senhorial, dos culos V-XV” em três volumes aos
quais se debruçam acerca da Idade Média, até em contestação em certos aspectos do pensamento de
Marx no que tange a formação do capitalismo e do próprio Estado impessoal
nas letras do regimento. Nesse sentido, os chamados mesteirais ou artesãos dos mais
diversos ofícios se situavam em um estatuto de subordinação perante as camadas
oligárquicas da cidade juntamente com os oficiais do concelho e do rei, um senhorio
coletivo. Aqueles se encontravam sob uma jurisdição disciplinante de controle dos
pesos, medidas, tabelamento dos preços das manufaturas, nos juramentos de bom
cumprimento feitos por parte dos mesteirais, bem como punições pecuniárias e por
cadeia a aqueles que não acatassem tais normas urbanas.
O fenômeno das cidades na Idade Média Ocidental
Partindo de uma ótica geral, a presente abordagem busca entender a dinâmica
das cidades a partir de suas diversas coletividades. Para fazê-lo, primeiro é
necessário caracterizar os motivos que favoreceram a intensificação dos quadros
urbanos durante a Baixa Idade Média. Tendo em vista a influência desgastante em
relação ao desenvolvimento do comércio e do dinheiro sobre as estruturas feudais,
a pressão da exploração senhorial sobre os camponeses junto ao declínio da
agricultura feudal na crise do século XIV, fez com que massas de campesinos
migrassem estritamente para as cidades (DOBB, 1971, p. 91). Com isso, entende-se
que ser um recém-morador de uma
urbs
medieval, envolvia estar imerso em novo
sistema de relações, sendo necessário que um membro ou família vindos do campo,
desestabilizados e não mais vinculados à sua terra de origem, ingressasse ou fosse
recrutado em alguma coletividade relacionada aos “mundos do trabalho”. Sendo
assim, iria para a artesania urbana, numa oficina regida por um mestre artesão, numa
corporação ou em um comércio de envergadura mais modesta fincado no mercado
ou nas feiras. (BERNARDO, 1997, p. 421).
No caso português em questão, mais precisamente pelo que se verifica nas
Posturas Antigas de Évora
, compreende-se que os artesãos de oficio ou os
denominados mesteirais, estavam diretamente atrelados a uma autoridade do
concelho, nisso, tais mesteres possuíam pouca ou quase nenhuma autonomia de
produção, sendo muitas vezes assalariados que estavam sob o pendor de fiscalização
dos organismos administrativos (MELO, 2009, p. 166). Esses tinham suas atividades
arregimentadas pelo controle local, havendo um tabelamento de preços, tarefas e
jornas a serem realizadas por cada oficial (MELO, 2009, p. 287). Como podemos
observar no caso dos
Titulos
existentes nas Posturas,
Titulo dos Olleiro, dos
alfayates de pano de cor, dos teçellãaes e tecedeiras, dos alfagemes”
dentre muitos
outros (BARROS
et al
, 2012, pp. 46-58). Encontram-se exemplos das mais diversas
leis que exigiam um juramento desses mesteirais junto aos Evangelhos para se agir
em
boom e proll regimento
da cidade. Assim, estavam ordenados em uma lógica
disciplinante e senhorial não tão distinta daquela que se predominava no meio rural
(o qual também por muitas vezes também estava atrelado ao controle citadino).
Espacialidades
A cidade também é um palco importante na atuação política e no
desenvolvimento de relações de poder, e isso é denotado pelas rivalidades e
afinidades que atravessam a convivência dos seus habitantes. Os elementos
característicos de uma cidade estão sob o jugo do devir e da mudança econômica,
política e social que a perpassa, nesse sentido, a marca urbana está impressa sobre
as circunstâncias históricas que a sustentam, bem como as edificações que a moldam
(GONZÁLEZ ASENJO, 2018, p.268).
No panorama dos séculos XIII e XIV, María Asenjo González afirma o seguinte
ao tratar das vilas e cidades do Reino de Castela:
Mudanças e inovações foram feitas nos assentamentos iniciais que
mostram que, nos séculos XIV e XV, a sociedade assimilou novas formas
e valores que introduziram novas referências de uso e diferenciação do
espaço com base na isenção e no privilégio. Circunstâncias que
contribuíram para moldar o espaço urbano com a localização de bairros
isentos, ruas com privilégios para seus vizinhos, entre outras diferenças
que marcaram status social. Além disso, as necessidades da gestão e do
governo precisavam de demarcações que fossem referência para a
organização política, legal, fiscal e militar. É o caso dos grupos,
demarcações que agrupavam várias colagens em muitas das cidades
castelhanas, ou adarves, que subdividiam e delimitavam o espaço interior
no que diz respeito à manutenção e defesa da muralha de Toledo. (ASENJO
GONZÁLEZ, 2018, p. 270).
3
Em suma, María Asenjo destaca não a intensificação dos moldes das
cidades castelhanas, mas a transformação do próprio conteúdo interno urbano
voltado às mudanças gerais do seu entorno, como no caso de Castela, a
reconfiguração dos espaços direcionados aos seus diversos estatutos e hierarquias.
O senhor coletivo urbano, enquanto se constituía no meio feudal por meio de
ascensões jurídicas e tributárias delegadas por superiores, expandiu sua influência
3
Sobre los asentamientos iniciales fueron realizandose cambios e innovaciones que prueban que, en
los siglos XIV y XV, la sociedad asimilaba nuevas formas y valores que introducian nuevos referentes
de uso y diferenciacion del espacio, basados en la exencion y el privilegio. Circunstancias que
contribuyeron a modelar el espacio urbano con la localizacion de barrios de exentos, calles con
privilégios para sus vecinos, junto a otras diferencias que marcaban el estatus social. Ademas, las
necesidades de gestion y el gobierno precisaban de demarcaciones que fueron referencia de
organizacion politica, juridica, fiscal y militar. Tal es el caso de las cuadrillas, demarcaciones que
agrupaban a varias collaciones en muchas de las ciudades castellanas, o de los adarves, que lotificaban
y demarcaban el espacio interior respecto al mantenimiento y defensa de la muralla de Toledo”.
para o exterior das muralhas, agora para zonas maiores atreladas a franquias e às
coletividades dirigentes das cidades.
A partir de foros outorgados por grandes senhores (como reis, bispos e
condes) aos pequenos aristocratas locais, foi se concebendo o direito de se delegar a
“baixa justiça”
4
destinada aos servos e artesãos, sobretudo na função de cobrar-se
tributos, rendas e multas, mantendo-se assim, a supremacia do desses na
comunidade, que se assentava em contrapartida, na vigência das oligarquias locais
às quais os mesmos concederam o poder de administração e distinção jurídica
(BERNARDO, 1997, p. 388). Nesse movimento, as cidades constituíram-se como
centros mais coesos e estáveis em relação aos domínios rurais, pois eram regidas
por um grupo articulado de elites sob o pendor de um grande magnate, assim
assumindo um papel de agentes ou oficiais senhoriais. Em Évora, essa atuação é vista
a partir do poder régio sobre as demais coletividades como observa-se na sua
documentação, desde a Carta de Foral expedida em 1166 por D. Afonso Henriques.
Nessa carta de franquia, eram delegados pelo poder real, benefícios fiscais aos
miles
(cavaleiros) povoadores da cidade, havendo nesse diploma, leis que dissertavam
acerca das questões de mercado, sobre o estabelecimento de um concelho formado
por meirinhos, juízes e uma assembleia de vizinhos, bem como multas aos peões e
cavaleiros que faltassem com as vontades do rei, juntamente a normas voltadas para
a segurança da cidade (BEIRANTE, 1995, pp. 24-25).
Nesse sentido, as associações juradas feitas essencialmente pelas elites
urbanas, fez com que concelhos urbanos ou se convertessem em associações de
acesso para membros ascendentes das fileiras oligárquicas, potencializando por sua
vez o poder do grande senhor que se fixa no centro ou no topo dessa teia dessas
relações.
Nas camadas mais distantes desse centro, estavam os artesãos e camponeses
que jaziam em limites mais baixos dos poderes justapostos, dobrando-se às querelas
da oligarquia urbana ou do concelho local propriamente dito. Com isso, as
associações de ofício no interior das cidades surgem desde um
ethos
de
policiamento, e tornam-se organizações formadas a partir de concessões
hierárquicas, tal como os forais. Essas corporações de ofício surgem de modo
4
“O senhor se reservava sempre o direito de alta justiça e contentava-se às vezes, em suas cartas de
franquia, em conceder garantias aos citadinos, que não podiam ser detidos se apresentassem uma
garantia ou uma caução, não podiam ser levados perante um tribunal sem uma queixa apresentada
por uma pessoa privada, salvo pelos crimes que eram da alçada da alta justiça. Concedia também aos
burgueses direitos de baixa e média justiça e a cobrança de multas que podiam constituir um recurso
financeiro para a comunidade” (LE GOFF, 1992, p. 83).
heterogêneo pelas cidades e vilas da Europa, integralmente submetidas às
observâncias das elites locais, e com isso tais associações e seus próprios artesãos
tinham de se adequar aos trâmites e impedimentos relegados, tal como o controle da
concorrência e a intervenção contra a usura e as fraudes no processo de produção
(LE GOFF, 1992, p. 99).
Adentrando mais uma vez no caso eborense e suas normas de outrora, há de
se elencar a importância dos
allmotaçes
(almotacés) e dos
veadores
(vedores) na
atuação de policiamento no processo de produção dos artesãos, seguindo
estritamente o que foi emitido pelas vereações do concelho. Os primeiros atuavam
no fisco e tabelamento de pesos, medidas e na qualidade dos produtos no mercado e
nas atividades dos mesteirais, estes afilavam os pesos das balanças e do mesmo
modo averiguavam se havia um bom cumprimento por parte dos mesteirais no que
era estipulado pela jurisdição costumeira das Posturas. os vedores eram
dependentes dos almotacés e atuavam junto aos mesmos na vigilância das atividades
dos mais diversos setores, como por exemplo o vedor do pão, da carne e do peixe
(MELO, 2009, p. 287).
Podemos observar o papel de policiamento desses agentes nas punições
estipuladas nas posturas, como por exemplo observa-se no Título dos alfaiates do
pano do linho:
E qualquer que
nom
for ao
dicto veador
com a ditas cousas em que
nom
he
(está) posta
allmoteçaria
ou mais pidir ou levar das
dicctas
cousas de
suso ou as não quiser fazer que pela primeira vez pague 60
ssolldos
e pela
segunda 60 soldos e pela t
erçeyra
60 e
coyma
e pague da
cadea
(BARROS
et al,
2012, p. 51).
Os Concelhos urbanos portugueses no século XIV: Uma organização do poder
citadino
Para adentrarmos em uma análise mais aprofundada sobre as Posturas
urbanas eborenses, faz-se necessário compreender a temática urbana no contexto
do Reino de Portugal tardo-medieval- especificamente na segunda metade século
XIV e princípios do XV- como a lógica dos poderes vigentes nessa altura, a maneira
como se comportavam em momentos ora de embates, ora de convergências. Poderes
esses não deliberados autarquicamente pela figura do rei, mas sim decorriam da
afirmação desse perante os restantes corpos constituídos, tal como os outros
senhores laicos, o corpo eclesiástico e os concelhos urbanos
5
(COSTA, 2013, p.10).
Quanto ao último elemento citado (os concelhos), os caminhos e níveis de
inserção de poder da realeza em seu âmbito são distintos e feitos de maneira
diferente. A historiadora portuguesa Adelaide Millán da Costa (2013), em suas
pesquisas acerca dos concelhos locais que surgiram pelas vilas portuguesas,
pondera a ocorrência de um diálogo tênue entre a coroa e os concelhos urbanos por
meio dos capítulos de cortes, tendo em vista que as dominações concelhias não se
vincularam juridicamente numa rota de poder alheia à realeza.
Em Portugal, os processos de delegação e administração das cidades pelos
concelhos urbanos se complexificou com o abandono das ordenanças contidas nos
antigos forais dos séculos XII e XIII (OLIVEIRA MARQUES, 1987, p. 198). Isso se
constituiu a partir da expedição régia nos assuntos locais. Em 1340, o rei Dom Afonso
IV expediu o
Regimento dos Corregedores,
o qual expunha claramente as demandas
reais junto aos oficiais dentre os concelhos do reino para a formação de agentes,
garantindo-se assim a intromissão da coroa nas querelas internas no surgimento das
vereações, bem como nas questões dos alcaides e alvazis
6
(COSTA, 2018, p.114). O
fenômeno de transição entre os séculos XIII e XIV na administração e nas leis das
cidades portuguesas, foi marcado pela ampliação dos cargos e órgãos regimentais
(OLIVEIRA MARQUES, 1987, p.199). Eram cargos mantidos sob o manto dos
homens
boons
7
, terminologia essa que definia as camadas privilegiadas nas cidades,
adjetivados como cavaleiros, escudeiros, homens das letras, grandes mercadores,
homens pertencentes a assembleia de
vizinhos
(COSTA, 2018, p.112), pois se
envolviam com as questões de poder e justiça e, por conseguinte, expediam
regimentos, posturas e ordenanças para resguardar seus interesses e também para
preservar seus patrimônios.
Nessa altura, compreende-se que em Portugal a partir de 1340, uma nova
administração urbana se impõe nos concelhos e câmaras. Essas não eram somente
Instituições funcionais moldadas ao bem comum da cidade, mas sim receptáculos de
5
Corpo formado por magistrados, os concelhos eram entidades de administração do meio urbano
durante a Idade Média (sobretudo no culo XIV), esses tinham diversas variações ao longo da
Europa, em geral tinham direitos de jurisdição local e formavam associações de juramento vassálico
a um senhor superior, que geral era um nobre ou o próprio rei. (LE GOFF, 1992, pp. 83-80).
6
Exerciam a
justiça
, julgando em conjunto com os alvazis e alcaides alguns feitos sem haver
possibilidade de recurso a suas sentenças; e principalmente
geriam
a cidade, vigiando os direitos
concelhios que concerniam à aplicação e atualização das ordenações e posturas, além de intervirem
na política financeira e administrativa dos bens comuns da instituição (COSTA, 2018, pp 114).
7
Dava-se indistinctamente esta denominação aos magistrados judiciaes e municipaes. Uns e outros
gozavam, durante o tempo que serviam, de grandes immunidades e regalia
projeção nobiliárquica e de ascensão ao poder proveniente de setores oligárquicos
ou os
homens-boons
. A partir do que se elabora nas reuniões de vereação ordenadas
no
Regimento de Afonso IV
, configura-se agora o erguimento das Casas da Câmara,
Paços de Vereações ou de concelhos. Rincões centrais nas cidades, feito com o
intuito de contemplar as reuniões estabelecidas para a assembleia dos vizinhos, que
gradualmente acatam para si o monopólio do poder municipal (TRINDADE, 2013, p.
614).
No que tange as Posturas eborenses, ou seja, as normas regimentais urbanas
expedidas em Évora nos finais do XIV, o aparato do concelho se torna visível a partir
da presença sistemática dos seus oficiais no cotidiano urbano. Isso está
corriqueiramente exposto no protocolo das letras inicias de cada postura,
“Outros y
mandarom chamar os soberdictos Aires Perez juiz por El Rey na dicta cidade
e os
vereadores”
(BARROS
et al
, 2012, p. 73) ou por exemplo o que se encontra no
Título
das bestas que acarretam uvas:
(...)
Item despois desto 15 dias do mes de Setenbro
da diccta era o dicto juiz e verreadores e procurador com acordo de muytos homens
boons”
(BARROS
et al
, 2012, p. 81). Nesse sentido, as figuras que exerciam um maior
papel deliberativo no seio dessas normas, foram os Juízes por
El-Rey
, os vereadores,
procuradores e corregedores, agentes que tinham um papel de autoridade e de
Justiça, porém eram um conjunto dependente da autoridade senhorial régia.
Em suma, as competências dos concelhos urbanos se baseavam na gestão da
cidade e também a aplicação da Justiça (COSTA, 2018, p. 120). Com a competência
das Vereações
8
e dos Paços de Câmara muito bem afirmadas, o poder local deixa de
ser irregular, aberto ou extraordinário, e torna-se uma estrutura muito mais restrita,
fechada e autoritária, cabendo-lhe as audiências de Justiça ordenadas por Juízes e
igualmente o estabelecimento de cadeias dentro do seu próprio edifício (COSTA,
2018, pp. 119-120).
Na circunscrição de Évora, o Paço do concelho se estabeleceu como um lugar
fixo próximo ao Açougue romano e também da Sé. As rendas provenientes das
coimas (multas) dos contraventores por muitas vezes eram destinadas as
obras do
concelho
, tendo sido voltadas para manutenção das obras da cidade, como o curral,
os muros ou o açougue. Nota-se esses aspectos por exemplo no que se abrangia na
Hordenaçom do currall do conçelho
. Ao longo dessa seção que aborda sobre a vinda
8
“Em Portugal, pode-se observar um processo muito semelhante. Como vimos para o caso de Lisboa,
depois de um período de ampliação social da assembleia aberta de vizinhos durante o século XIII, as
reuniões passam a ocorrer, nas primeiras décadas do século XIV, apenas com a presença do alcaide,
dos alvazis e dos homens bons habitantes das cidades. Como consequência, surge o cargo dos
vereadores
” (COSTA, 2018, p. 111).
e retirada dos gados no curral da cidade, observa-se o processo de acusação
remetida aos quais tiravam as bestas do curral sem autorização ou um mandato de
justiça, e logo lhes foi atribuído como sentença:
“[...]
que quallquer que do dicto currall o tirrar sem mandado da justiça ou
da /fl. 59 v./ daquele [sic] que o poder tever pera o dar e tirar nenhum gado
nem bestas dele se for pessoa honrada que pague dez libras pera as obras
do concelho e se for pessoa vil que pague çinquo libras pera as dictas obras
do conçelho e seja preso e pague os da cadea etc.”
(BARROS
et al
, 2012, p.
96)
As Posturas Antigas de Évora: Uma intermediação aproximada
As posturas urbanas das vilas e cidades portuguesas e as
ordenanzas
castelhanas têm sido uma importante base nas pesquisas que envolvem as cidades
na conjuntura tardo-medieval ibérica, justamente por serem documentos que
contêm normas urbanas voltadas à regulamentação da vida local (FEIO, 2017, p. 15).
Mas, o que de fato caracteriza ou define essas leis urbanas tardo-medievais?
O historiador espanhol Pílar Morollón Hernández em sua pesquisa embasada
nas
Ordenanzas Municipales de Toledo
, fonte regimental castelhana lavrada nos
finais do XIV, caracterizou as regulamentações urbanas como fruto desse mesmo
século, estabelecidas para contrabalançar a defasagem dos
fueros
(cartas de foral) a
partir das demandas das coletividades urbanas ou da própria monarquia. Sendo
assim impunham legislações mais articuladas e centralizadas em uma justiça comum
(MOROLLÓN HERNÁNDEZ, 2005, p. 266). No caso castelhano-leonês, conforme o
autor, a partir de Alfonso X e Alfonso XI, em meados do século XIV, certas
deliberações de Justiça que eram de competência local foram para a alçada régia,
logo para os
concejos,
comprimiu-se assim a administração econômica e
organizativa das vilas e cidades. Em suma, as ordenanças municipais estavam sob a
potestade dos concelhos urbanos, abrangiam essencialmente leis e regimentos que
compreendem as atividades e dinâmicas dos “vizinhos” e moradores (MOROLLÓN
HERNÁNDEZ, 2005, p. 266).
Segundo Morollón, os fólios dessas ordenações abarcavam diversos temas
que percorrem o meio urbano, tais como preços, salários por ofícios, o mercado,
festividades, exportações e importações, regulamentações da caça, pesca, limpeza
das ruas, segurança pública, a arregimentação das atividades manufatureiras e
comerciais, o fisco do controle de pesos, medidas e qualidade dos víveres, bem como
o acesso dos moradores a
vecindad
. Tudo isso
é deliberado pelas camadas
oligárquicas que detêm o poder urbano-aspectos que se assemelham com as
posturas- (MOROLLÓN HERNÁNDEZ, 2005, pp. 265-266).
Voltando à nossa circunscrição em questão o Reino de Portugal, mais
precisamente Évora e suas posturas entende-se que ao longo dos trezentos ambos
experimentam muitas vicissitudes as vicissitudes da crise desse século. Com isso,
como ocorrera no caso castelhano, crescia a interferência da coroa nos assuntos
locais e junto a isso formam-se concelhos mais atrelados ao poder régio. Entre os
anos de 1381 e 1382, emergiram as Guerras Fernandinas, guerras que o até então rei
D. Fernando, o último de sua casa dinástica, empreendeu contra Castela, tornado
assim o Alentejo como o principal palco de combate. Em Évora, por conseguinte, os
homens-boons
vieram a aderir à causa real de Dom João I, Mestre da Ordem de Avis.
Já em 1384, este foi reconhecido como senhor da cidade e nisso prometeu guardar e
respeitar os costumes e foros da mesma, cedendo benefícios aos apoiadores de seu
intento (FEIO, 2017, p. 52).
Nas Posturas estão presentes normas em relação à grande mingua da seca e
da guerra que assolaram a cidade, como uma de 1385 que trata sobre as lavouras e a
atuação dos lavradores e mancebos os quais sofrem danos frequentes por razão da
guerra:
“[...]por
neçesidade da guerra nom podem fazer
/ suas
lavoiras
como
seriam nem as terras boas que seriam a lavrar não são
llavvradas
por causa
das guerras e por esta
rrazom
não pão de nada de mais essas poucas
de novidades que
ham som lhe
destruídas e danadas por razão dos inimigos
antes que as colham porém nos os
sobredictos
vistas todas
neçesidades
e
outras muitas concordantes
a esto mandarom e poserom por
hordenamento
enquanto for a
neçesidade da guerra
que os lavradores que
som
theudos
de pagar
pam de solldada
aos
mançebos
que lhe seja
paguado
a 20
solldos o allqueire e vista a dicta neçesidade pella guisa que dicto he
.
Eu Joham Afomso
scripvam
da
camara do conçelho
que per mandado dos
dictos senhores esta hordenaçom scripvi pella guisa que dicto he etc”
(
BARROS
et al.
2012, p. 89).
Acerca de sua tipologia, o
Livro das Posturas Antigas de Évora
guarda 254
Posturas e 80 fólios lavrados entre 1375 e 1395-como referido na própria
documentação. Tratava-se essencialmente de normas e regulações expedidas nas
reuniões concelhias, atuavam sobre as várias esferas e assuntos que tangenciavam
a
civitas
, como a produção artesanal, o setor alimentar e o mercado. O que se
conhece do códice das posturas atualmente, é oriundo de uma gama de esforços de
preservação dessas em diversos contextos. Em 1466, por exemplo, o cavaleiro
escrivão da Câmara de Évora, Fernão Lopes de Carvalho, que transcreveu as Atas
de Vereações, de modo a elaborar cadernos que se dividem em duas colunas por
fólios. Em 1662, o escrivão Francisco Cabral da Almada compilou esses cadernos que
até então se encontravam difusos, e no século XIX, precisamente em 1885, o
paleógrafo e arquivista Gabriel Pereira publica partes do códice
9
. Nesse sentido, 217
das 254 Posturas expedidas pelo concelho eborense não se encontram datadas, daí
a dificuldade em se dispor uma data muito específica para enquadrá-las. O que se
define enquanto o período de produção se confirma por base de algumas Posturas
datadas que fazem referência a participação de oficiais camarários no registro de
suas emissões (FEIO, 2017, p. 143).
um grande núcleo de posturas que abordam os mesteirais, ou seja,
assalariados, artesãos ou trabalhadores. Tratava-se de um setor extremamente
heterogêneo, pois havia um capital simbólico, financeiro e social que diferenciava
cada mesteiral de um respectivo ofício. Um denominador comum que poderia definir-
se entre esses grupos segundo Arnaldo Sousa Melo, seria a ausência de participação
deliberativa dessas nas fileiras oligárquicas dos concelhos exceto em alguns casos
específicos, como dos ourives que tinham um estatuto superior aos demais (MELO,
2013, p. 152) portanto os mesteres participavam coletivamente ou por meio de
representantes nos processos de decisão sobre o tabelamento preços, pesos,
qualidades e serviços nas assembleias. Contudo, mesmo não tendo o poder de
decisão, esses frequentemente organizavam-se a partir de representantes e
procuradores nas vereações, para influir nos assuntos mais sensíveis para si,
sobretudo o tabelamento dos preços das atividades e das manufaturas (MELO, 2013,
p. 165).
Essa relação por vezes levava a conflitos entre a autoridade citadina e seus
artesãos. Por exemplo, sabemos do envolvimento dos atafoneiros em querelas junto
ao concelho no que sobre os preços de moagem do trigo entre junho e agosto de
1380. Em uma disputa envolvendo os atafoneiros, os procuradores, Juízes e o
concelho sobre o tabelamento do preço das moagens de trigo nas atafonas, houve
uma organização mobilizada desses mesteirais em se remover as segurelhas
10
das
atafonas como é possível visualizar no fragmento abaixo:
“[...]atafoneiros se ajuntaram em maneira de confraria e que andaram por
todas as atafonas da cidade tomando-lhe as segurelhas para a haverem
a/zo
de não moerem pela cidade em tal que lhes deixassem moer como
eles quisessem os quais disseram logo ao dito juiz que por direito que estes
9
Gabriel Pereira, Documentos Históricos da Cidade de Évora, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da
Moeda, 1998 (ed. fac-similada, Évora, Tipografia da Casa Pia, 1885), doc. LXXIX, pp. 127-154.
10
Peça em que entra o ferro que segura a mó inferior das atafonas.
tais que isto faziam que deviam de haver pena e que era bem tornar logo a
ello
pelo modo que compre. E o
dicto juiz
disse que ele tinha tomado a
inquirição sobre ello” (BARROS, 2012, p. 165).
Na obra Rodolfo Petronilho sobre as posturas, elenca-se agora os temas
agropastoris (FEIO, 2017, p. 114). O Alentejo, nessa altura, era essencialmente uma
área cerealífera e apta para pastagens. Ambas as produções se revezavam na rotação
de culturas, e seguindo o grande movimento de arrendamentos e apropriações de
terra presentes nesse século, as pastagens no Alentejo eram exclusivas e
permanentes, entrando em conflito com a existência de coutadas e a presença de
gado nas terras lavráveis, como vinhas e plantações de trigo
11
(OLIVEIRA MARQUES,
1987, pp. 93-103).
No âmbito das posturas, encontramos referências abarcando as dinâmicas de
propriedades arrendadas, meios de produção, controle e criação: vinhas, florestas,
lavouras, coutadas e pastagens. São várias as passagens que abordavam a presença
punitiva dos homens do concelho a aqueles que transitassem entre as vinhas com
animais, caçassem nas mesmas, recolhessem frutas sem permissão ou igualmente
retirassem madeira das florestas fora da hora permitida. Isso denota um
ethos
de
manutenção e detenção das propriedades periurbanas por parte dos homens-bons,
havendo-se assim muitos fragmentos que levantavam essas temáticas, dentre esses,
pode-se mencionar o que se verifica nas
Postura das Vinhas:
“[...]
que nom sejam nenhuuns mouros atam housados nem mouras que
durmam nem vãao dormir aas viinhas nem pella calma so pena de
60
soldos e da cadea.
(...)
que nom façam lume nas dictas viinhas sem alvará
fecto per mãao do scripvam da câmara”
(BARROS
et al
, 2012, p. 33).
Nessa abordagem em questão, tratou-se de que nem mouros, nem mouras
pudessem dormir nas vinhas ou fazer um
lume
nas mesmas sem um alvará da
câmara, havendo uma pena de coima de 60 soldos e cadeia para quem descumprisse
a dita ordem.
No âmago dessas normas, também existiam regulamentações intimamente
ligadas à salubridade urbana, ao manejo do lixo, a qualidade dos produtos e insumos-
averiguar se encontravam putrefatos ou não- bem como a manutenção da limpeza
nas áreas de consumo, ao passo que fiscalizavam o manejo dos estercos, dos
11
“Não que, ao transpor-se as suas portas, tudo mude radicalmente: o campo, muito próximo, e
dominado pela propriedade e pelos capitais citadinos e, aqui e ali, residências de burgueses; os
seus habitantes vêm regularmente ao mercado, cruzam--se no caminho com os agricultores, que são
sempre em grande número nas metrópoles, atravessam,
iníra muros
, jardins e vinhedos e, ao passar,
afugentam aves e porcos iguais aos da sua aldeia, mas nascidos e criados a sombra das muralhas” (
ROSSIAUD, 1989, p.101).
excrementos, o trânsito dos animais pela cidade, o açougue, as ruas e os poços de
água, as covas e outras muitas outras áreas da cidade. Isso ocorre de tal modo que o
concelho intercede nesses assuntos por meio de seus oficiais que puniam a quem
cometesse tais infrações com as coimas, ou também com a cadeia. Mário Jorge da
Motta Bastos também explicita que embora o período de emissão das posturas fosse
contemporâneo ao fenômeno da chamada Peste Negra, segundo ele, a peste
bubônica não foi referida claramente nos discursos voltados à higiene urbana nessa
documentação. Contudo, na fonte é nítida associação do nojo, do lixo e da putrefação
com a doença (BASTOS, 2009, p. 124). Podemos observar essas ações na postura
Que os enxarqueiros vãao matar os porcos aas casas dos homens boons
no
segmento que aborda a má atuação dos esfoladores em lavar as carnes:
Outrosy o diccto Vasco Gill juiz e os ssobredictos porque lhes foy dicto e
denuciiado que os sffolladorres das carnes ffaziam em ellas grandes lixos
convem a saber lavando as dictas carnes com as ourriinas dellas e com
auguas maas e lixossas por aa quall rezom as gentees aviiam dello grande
nojos e vendo que dello sse podia sseguir dapno aas gentes mandarom que
os dictos esffolladores llavem as dicctas carnes com booas auguas liinpas
em tall guisa que nom venham llixossas ao açougue e a praça. E quallquer
que a trouxer llixossa ao açougue e praça per cullpa do esffollador que a
lluxar e a nom quiigerllavar ou ffazer em ella o diccto llixo que foy
denuçiado que pella / fl. 11/72primeira vez pague b libras e pella segunda x
libras e sejam per as obras do conçelho e o que o acussar aja ho terço e
pella terçeira que lhem [sic] dem xx acoutes em praça e pague as dictas
coymas e da cadea e quallquer vizinho o que esto vir e o quiger acussar
sseja creudo per sseu juramento sse for homemde booa ffama e aja ho
terço das ditas coymas etc
(BARROS
et al
, 2012, p. 28).
Em suma, as
O Livro das Posturas Antigas de Évora
se compreende enquanto
uma fonte regimental consuetudinária que aborda um conjunto de normas que se
medeiam nas dinâmicas de poder e trabalho presentes na conjuntura de uma cidade
baixo-medieval portuguesa. Eram dispostas em proveito do cotidiano urbano, que
em um caráter de imposição, arregimentavam a cobrança de coimas, rendas, o
controle da qualidade e dos pesos dos produtos, a manutenção dos pastos e das
vinhas e outrossim na fiscalização da “limpeza” urbana. Havia a tentativa de se
exercer a total vigilância dos mais diversos ofícios realizados. No fisco dos rendeiros,
por sua vez, agentes como almotacés, procuradores
12
, vedores, pregoeiros e os juízes
por
“El Rey”
exerciam a normatização sobre os rendeiros, mesteirais, camponeses
artesãos dos vários ofícios existentes, embora houvesse reações das outras partes,
12
Oficiais que compõe os quadros concelhios em Portugal a partir da segunda metade do XIV, são
especialmente citados nas Posturas de Évora, os cargos que orbitam administração concelhia, como
os almotacés, que atuam no Mercado como reguladores do peso e das medidas dos produtos dos
artesãos, igualmente afilam as balanças e aplicam coimas as irregularidades. Outro personagem
recorrente na Fonte, é a figura do Procurador, esse era grande o intermediário entre concelho e os
mesteirais.
a partir das posturas, se observa a predominância geral dos interesses do concelho
perante as reivindicações dos artesãos.
Considerações Finais
Em uma perspectiva mais geral e ampla, as cidades medievais não eram
impermeáveis às dinâmicas externas aos seus muros, como por exemplo da própria
lógica senhorial. Jacques Rossiaud por exemplo, considera que as diferenças que
caracterizavam uma cidade em relação à outra utilizando o exemplo de cidades
portadoras de maior fama ou porte no medievo, tais como Florença, Metz,
Montbrison e Siena eram essencialmente diferenças de gradação, mas não de
conteúdo ou de natureza. As cidades não estavam encerradas em suas muralhas e
nem tampouco despojadas de uma vasta teia de relações religiosas, mercantis,
artesanais e, sobretudo, de poder
13
(ROSSIAUD, 1989, p. 100).
Pode-se esquadrinhar a partir desse artigo introdutório sobre Évora, Portugal
e também acerca das cidades tardo-medievais em um quadro maior, que embora
ocorresse diferenças regionais, espaciais, políticas, geográficas entre as urbes do
Ocidente medieval, essas não eram avessas aos poderes que a circunscreviam.
Acerca da minha pesquisa a qual foi abordada no presente texto, busquei introduzir
alguns elementos trazidos nessas normas regimentais do século XIV que
dialogassem com os chamados “grandes temas” relacionados à urbanidade no
medievo- a artesania, as corporações, o senhorio coletivo, as instituições, os espaços
citadinos (a cidade, suas muralhas e arrabaldes), a justiça local e o comércio urbano.
Por meio do exemplo das posturas antigas eborenses, pude constituir uma
análise de caso a qual defina as relações de poder pautadas na cidade, materializadas
em regulamentações volvidas a uma distribuição desigual do poder delegativo.
Forma-se, nesse sentido, um quadro oligárquico nas cidades, uma “elite de poder”,
como foi bem abordado por João Bernardo anteriormente, eram figuras que
guardavam para si o prestígio e a influência. Como ensaiamos demonstrar no
presente manuscrito, estas leis urbanas tardo-medievais tinham como princípio o
direito consuetudinário, eram expedidas em condições ordinárias e também
circunstanciais, e abarcavam sobretudo, importantes temas da cidade, que embora
sejam normativas que prezam pelo bom-regimento”, o conjunto dessas posturas
13
“mas a linguagem e a mesma; não existe uma fortaleza urbana, a cidade não e considerada como
algo isolado (F. Braudel), está inserida numa teia de relações (religiosas, mercantis, artesanais, etc.)
por intermédio da qual se propagam modelos vindos das metrópoles. Em suma, se não existe um
sistema urbano, desenvolve-se um Ocidente urbano cujos membros são todos mais ou menos
parentes, fazem parte de uma espécie de clã” (ROSSIAUD, 1989, p.100).
pesava sobretudo na diferenciação dos estatutos aos quais as leis lhes cabiam, e
dessa maneira, se mobilizam e se somam nos estudos das muitas pesquisas que
abarcam o mundo urbano
medieval.
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